GESTÃO S.A | Namoro ou união estável? O Direito em compasso com as evoluções sociais

Por Lidiana Velere

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Dentre todos os ramos do Direito, pode-se afirmar que o Direito de Família foi o que sofreu, nas últimas décadas, as mais significativas transformações. A evolução social que se verificou, principalmente a partir da década de 70, trouxe consigo uma renovação nas relações familiares. Isso porque, antes de ser um fenômeno jurídico, a família é um fenômeno social. 

Ao longo dos séculos, o Direito de Família refletiu modelos sociais, morais e religiosos dominantes na sociedade de cada época. Desse modo, o atual modelo pouco ou nada tem em comum com aquele existente nos séculos anteriores. 

A evolução dos costumes trouxe consigo, por exemplo, as novas formas de procriação (mas também a formação de famílias sem o intuito de gerar filhos); a possibilidade de divórcio direto (sem que se questione prazos, culpa, causas que o justifiquem); o reconhecimento de direitos às uniões homoafetivas e, sobretudo, o reconhecimento do afeto como elemento formador da família contemporânea. 

A família, antes formada exclusivamente a partir do casamento e vista como um núcleo reprodutor e financeiro, hoje tem o afeto como sua mola propulsora.

A partir do momento em que a mulher ampliou a sua inserção no mercado de trabalho, de modo que em muitos lares o homem já não é o único provedor financeiro; o que se alia ao advento dos métodos contraceptivos, ou seja, à liberdade de ter ou não filhos, cada vez menos casais estarão unidos entre si por laços outros que não sejam o afeto, o amor, a colaboração mútua e, sobretudo, a vontade de assim permanecer.  

É por isso que, ao contrário do que muitos sustentam, a família não está em declínio. Se, de um lado, temos a facilitação do divórcio, de outro, temos uma legislação que reconhece e estende direitos às uniões informais, àquelas que “simplesmente acontecem”. E diariamente famílias vão se formando, alicerçadas principalmente no amor e no afeto.

Assim o Direito de Família se estrutura e, via de consequência, tem-se que as questões hoje submetidas às Varas de Família devem ser vistas sob a perspectiva de valorização dos sujeitos envolvidos. Trata-se de valorizar as pessoas que compõem a família e não esta enquanto instituição. 

E foi nesse contexto que, de forma inovadora, nossa Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de família, reconhecendo, também, a união estável como tal. 

Antes chamada de “concubinato”, a família convivencial perdeu o estigma e, embora a ausência de solenidade e formalismos em sua formação, passou a receber especial proteção do Estado. Hoje, embora alguma discordância doutrinária, em praticamente tudo se assemelha ao casamento. 


Requisitos para a configuração enquanto entidade familiar

Costumo lembrar que antigamente os relacionamentos possuíam marcos bem delimitados: o casal namorava, havia o período de noivado e, após uma cerimônia, casavam-se. 

No entanto, com a evolução dos costumes, comumente nos deparamos com casais que se conhecem, “juntam as escovas de dentes” e, quando se dão conta, vivem em uma relação que configura união estável. Não há uma escolha consciente, um marco, uma cerimônia. Apenas acontece. Na maioria das vezes, nem os próprios sujeitos envolvidos sabem precisar em que momento aquele namoro passou a configurar uma relação convivencial e, portanto, a receber a tutela do Direito de Família. 

A nossa legislação (artigo 1.723 do Código Civil) traz expressamente as condições/requisitos para a configuração da união estável enquanto entidade familiar. Dispõe a lei que a união estável é reconhecida como entidade familiar, desde que se configure na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a publicidade diz respeito à notoriedade no meio social, ou seja, que o casal é reconhecido em suas relações como se casados fossem. Além da prova testemunhal, postagens em redes sociais têm sido bastante utilizadas para comprovar esse requisito.

Vale ressaltar que recentemente este requisito foi flexibilizado, quando do julgamento de uma ação que buscava reconhecer uma relação homoafetiva. A 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT considerou o contexto de preconceito da sociedade contemporânea ao reconhecer a união estável post mortem entre dois homens.

A homofobia é um fenômeno latente no país, não sendo raros os casos de casais homoafetivos que, embora vivendo em um contexto de uma verdadeira família, declaram-se apenas amigos, a fim de dissipar o preconceito. 

O requisito da durabilidade diz respeito à estabilidade, reconhecendo-se como união estável apenas as relações não eventuais.

Nesse ponto, importante afastar a ideia propagada pelo senso comum de que há um tempo pré-fixado para que se caracterize a união estável. Muito ouvimos falar nos “dois anos”, o que não encontra respaldo jurídico. A legislação atual não fixou período mínimo de convivência. A depender do caso concreto, a união estável pode ser reconhecida em uma relação de poucos meses, assim como pode ser afastada em um relacionamento de décadas.

Já a continuidade está atrelada à permanência.

Mas sem dúvida, o principal requisito é o objetivo de constituição de família. Trata-se de um elemento subjetivo, o qual diz respeito à intenção do casal de estar vivendo como se casados fossem. É o tratamento recíproco como esposos, integrantes de um mesmo núcleo familiar, com objetivos comuns a serem alcançados em conjunto. 

E, se de um lado, é o mais importante dos requisitos, justamente por esta subjetividade, é o mais difícil de ser comprovado. Não raras vezes, aliás, um dos integrantes do relacionamento carrega consigo a ideia de constituição de família, enquanto o outro não. Ao juízo de família competirá, então, conforme a prova dos autos, decidir se naquele contexto existia ou não relação de conjugalidade. 

E essa prova pode ocorrer, por exemplo, através da comprovação de dependência econômica, condição de dependente em plano de saúde ou imposto de renda ou, ainda, de beneficiário em seguro de vida.

Uma relação pública, contínua e duradoura, mas que não tenha o ânimo de constituir família não configura união estável. E veja-se: a coabitação, embora traga algum indício de uma união estável, não é requisito essencial. 

Muitos casais, já em idade avançada, em um segundo relacionamento ou com filhos que não são comuns, optam por não dividir o mesmo teto. O mesmo pode ocorrer por necessidades profissionais ou escolha de cada um. Plenamente possível, no entanto, que a situação se enquadre como família.

De outro lado, um casal de namorados pode optar por morar junto, sem que isso configure união estável. 


O contrato de convivência

Na prática familiarista, o que verificamos é que a grande maioria das pessoas que vive em união estável jamais documentou a relação. Aliás, sequer sabem denominar o seu relacionamento ou precisar o dia em que deixaram de ter um namoro e passaram a viver em união estável. 

O ser humano tem buscado cada vez mais sua realização pessoal, os relacionamentos estão mais voláteis e, naturalmente, as expectativas depositadas no parceiro servem como bloqueio para que, muitas vezes, abordemos o assunto patrimônio no limiar de uma relação afetiva. 

Embora, muitas vezes, as pessoas “só queiram amar”, o Estado atribui efeitos jurídicos às relações que caracterizam união estável. Embora não gere alteração de estado civil, a união estável gera obrigação alimentar entre os conviventes, efeitos patrimoniais e sucessórios.

A formalização de pactos preliminares pode, assim, evitar dolorosas disputas judiciais. 

A principal questão normalmente tratada nos contratos de união estável diz respeito à escolha de regime de bens diverso da comunhão parcial de bens, que vigora caso nada seja estipulado em contrário. As partes podem estipular regime que melhor atenda às suas necessidades, inclusive através da estipulação de um regime híbrido.

E, nesse aspecto, é importante compartilhar a atual posição do STJ, no sentido de que é impossível emprestar efeitos jurídicos retroativos ao contrato de união estável. Em outras palavras: Entende o STJ que enquanto nada for dito, vigora o regime da comunhão parcial. Regime diverso, escolhido pelos conviventes, só vigora da data da formalização do contrato em diante.

Daí decorre a inafastável importância de um enfrentamento antecipado das questões patrimoniais.  


Do contrato de namoro

Como dito antes, se não houver o intuito de constituir família, não se caracteriza a união estável.  

Assim, recentemente, para que os envolvidos não fossem tomados de surpresa no decorrer de um relacionamento que não reúne tal requisito, passou a se formalizar o chamado “contrato de namoro”. Neste, o casal reconhece que está envolvido em um relacionamento amoroso, o qual se esgota nisso mesmo, ou seja, que não há a intenção de constituir família.

Visto inicialmente com desconfiança, sobretudo porque eventual união estável ocorre no mundo dos fatos, de modo que um documento escrito não poderia se sobrepor à realidade da vida, hoje o contrato de namoro ganha cada vez mais defensores na doutrina especializada. 

De fato, se a relação não é um simples namoro, mas configura união estável, um contrato não terá o alcance de desqualificá-la. 

No entanto, parece plenamente possível a elaboração de um documento que sinalize a existência de mero namoro e que, caso o relacionamento evolua para uma entidade familiar, que suas normas patrimoniais sejam reguladas, por exemplo, pelo regime da separação convencional de bens. 


Assim é o Direito: uma ciência que não é exata, que acompanha a evolução da sociedade e que está em constante mudança. Um bom profissional sempre saberá apontar caminhos e atender às expectativas patrimoniais daqueles que optaram ou, como não raras vezes, deram-se conta de que vivem em união estável.


Lidiana Velere (Foto: Diogo Ferreira)


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