Quem diariamente caminha pelas ruas centrais de Passo Fundo passou a observar a presença do amarelo das flores do chá popularmente conhecido como de “Marcela”. Desde o início de março, muitas famílias indígenas se deslocaram para a cidade em busca de uma renda extra com a venda da planta. No entanto, a estiagem que assolou todo o Estado nos últimos meses prejudicou também o desenvolvimento da espécie, afetando tanto quem o comercializa, quanto quem segue a tradição da colheita da macela na Sexta-feira Santa.
A indígena Silvandra, da Reserva de Nonoai, tem a colheita e a venda do chá de macela como uma herança de família. Acompanhando seus pais desde criança, agora é a vez dela e da irmã se deslocarem junto aos seus filhos para a cidade. “Desde criança, eu vinha junto com meus pais. Isso vai passando de geração para geração e, conforme as crianças vão crescendo, elas vão aprendendo também”, contou, destacando como a venda se torna um auxílio para pagar as contas. “Ajuda a comprar alimento, pagar a luz e comprar as coisas que nossos filhos precisam”, disse.
Apesar da viagem neste período ser comum, essa é a primeira vez, depois de muitos anos, que a família vem para Passo Fundo fazer a comercialização. Em todo período de Páscoa eles se deslocavam de ônibus até Porto Alegre, mas devido à estiagem que o Rio Grande do Sul enfrentou durante o verão 2021/2022, Silvandra explicou que a macela não se desenvolveu em grandes quantidades como em anos anteriores. O cenário que já não era positivo se somou à volta intensa das chuvas no último mês, o que resultou no apodrecimento de muitas das ervas. Assim, com pouco chá, não se tornou vantajoso para a família percorrer uma distância tão grande à capital.
Adelso da Silva, morador da Aldeia Nonoai e que vende a macela há mais de trinta anos em Passo Fundo, relembra que para além dos empecilhos de clima enfrentados nesta safra, é necessário se deslocar grandes distâncias para a colheita da planta, já que o ideal é cortar as que nascem dentro do mato pela sua pureza. Silvandra relata que sua família caminhou quase 5 km para achar a macela, o que fez com que levassem comida para se alimentarem enquanto faziam a coleta. “É uma viagem para procurar, porque não deu perto esse ano e deu pouco. Além de longe, deu pouco e aí a gente sofre”, disse.
A Sexta-feira Santa e a tradição da colheita
Enquanto isso, na beira de estrada e campos, uma movimentação logo cedo pode ser observada todos os anos no dia da Sexta-feira Santa. Hoje (15) é celebrada a Sexta-feira Santa e, antes mesmo de o sol ter dado seus primeiros sinais no horizonte, Dilema Calderan Benetti saiu de sua casa no interior de Sananduva em busca dos ramos de macela perfeitos.
A agricultora de 63 anos carrega o costume na Sexta-feira Santa desde que era criança e tinha sua avó viva e como exemplo. Para ela, a colheita vai muito além do chá e dos benefícios que ele traz à saúde, representando a manutenção de uma tradição de seus antepassados. “Colher a macela na Sexta-feira Santa para mim tem um significado muito especial, que é manter viva a tradição e levar adiante o costume para nossos filhos”, contou.
Visão religiosa
Segundo o Padre da Arquidiocese de Passo Fundo, Ari Antônio dos Reis, essa tradição carrega diferentes simbologias relacionadas às ervas a serviço do ser humano, as graças de Deus e ao próprio rito da colheita. Ele explica, inicialmente, que na bíblia é descrito que quando Deus cria todas as coisas, ele cria as ervas do campo em benefício do ser humano. “Compreendemos que essas ervas não tem só a dimensão da alimentação, mas também uma dimensão curativa”, esclareceu.
Acompanhado disso, na época da quaresma, em que se é celebrada a Sexta-feira Santa, a macela fica madura, pronta para colher. “Assim, vai nascendo a tradição da colheita da macela na Sexta-feira Santa, onde é associado a vida e a missão de Jesus, onde eu pego a planta, tomo o chá, mas eu também sei que a cura vai acontecer pela força de Deus”, esclareceu o religioso.
Essa tradição é perpetuada pelo rito de acordar cedo, ir sozinho ou acompanhado de pessoas próximas até o campo, colher a planta, trazê-la para casa e guardá-la. Padre Ari relembra o quão importante isso é, por mais simples que pareça, visto que em muitas comunidades são realizadas celebrações para abençoar as ervas colhidas. “As comunidades também acolhem essa tradição popular, sabendo que nós precisamos buscar essas ervas para resolver nossas dificuldades de saúde”, pontuou, destacando que as ervas acabam sendo duplamente abençoadas.