Em um trabalho solitário e artesanal, executado com o uso de um ponteiro e um martelo, o calceteiro Luis Ademir da Silva vem substituindo, uma a uma, as pedras que formam os mosaicos espalhados pelas calçadas históricas da Praça Marechal Floriano, também conhecida como Praça da Cuia, no centro de Passo Fundo. O trabalho é parte do projeto de revitalização do espaço, que iniciou há mais de três meses, e deve resultar na restauração de aproximadamente 80% do piso original da praça. A previsão inicial era de que a obra fosse concluída até o mês de dezembro, no entanto, as chuvas constantes registradas nas últimas semanas têm atrasado o processo, que não pode ser realizado em dias de precipitação.
Morador de Cuiabá, no Mato Grosso, Luis atua há mais de 30 anos em uma profissão escassa no país. De acordo com o calceteiro de 62 anos, por ser um trabalho solitário e vagaroso, cujos projetos podem levar mais de um ano para serem concluídos, há poucas pessoas interessadas em levar o ofício da calcetaria adiante. “Trabalhar com restauração é um trabalho muito devagar. Você precisa arrancar com cuidado para não quebrar ao redor, não danificar outras pedras e para manter o padrão original. Então é bem mais difícil para arrumar alguém do que seria para fazer uma calçada nova. Da minha geração, quase não tem mais ninguém que faça. Os mais novos também não. Hoje em dia é difícil, o pessoal não quer mais trabalhar com isso”, conta.
Basta circular pela Praça Marechal Floriano e observar, por meros minutos, o trabalho executado pelo calceteiro Luis, enquanto ele se debruça durante horas sobre a calçada, para entender a atenção que o processo exige. Utilizando um ponteiro, o calceteiro arranca uma pedra por vez, antes de substituí-las, também uma a uma, com a ajuda de um martelo, a fim de fixá-las na terra, por vezes, adicionando ainda um pouco de cimento. Por se tratar da restauração de uma calçada repleta de mosaicos, o grande desafio é executar a reparação sem perder a forma original dos desenhos, motivo pelo qual cada pedra precisa ser encaixada milimetricamente e, quando necessário, lapidada até que fique do tamanho adequado. O mesmo cuidado é tomado, também, na hora de arrancar o material, para não prejudicar as pedras que estão ao redor e ainda se encontram em bom uso.
Para o projeto de restauração da Praça da Cuia, Luis explica que tem realizado a substituição total das pedras portuguesas de coloração branca e, no caso das pedras escuras, somente aquelas que estão danificadas. O material usado, no caso das pedras claras, é a pedra calcária, enquanto as escuras são chamadas de basalto, conforme o especialista. “Esse cordões que ficam entre a calçada e a grama eu também vou arrancar tudo e trocar todinhos”, descreve, mencionando que os reparos devem alcançar mais de dois mil metros quadrados do espaço. “Eu comecei o serviço no meio, ao redor da cuia, onde tinha mais desenho, e vim fazendo em círculo. Vou indo assim até chegar na parte de fora. Pode ver que, onde foi substituído, o branco se destaca. O desenho aparece. Antes as pessoas não reparavam, mas agora até param para ver”.
Profissão passada de pai para filho
Os desafios da profissão vão além do dia a dia exaustivo. Os ossos do ofício, segundo o calceteiro, incluem ainda a saudade da família, que permanece em Cuiabá. “Eu sempre trabalhei muito no Sul. Só na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, eu fiquei trabalhando sozinho por dois anos”. Os períodos prolongados de chuva, quando não é possível trabalhar, costumam ser aproveitados para visitar a família, em média, a cada dois meses. “Eu tenho a minha esposa e três filhos lá no Mato Grosso. Antigamente, eu ficava um mês trabalhando e depois ia pra casa. Aí os filhos foram crescendo, eu também vou ficando mais velho, e hoje em dia vou menos. Mas nunca fico mais de três meses longe. Dá saudade da família, da casa. Dessa vez meu filho caçula veio junto comigo pela primeira vez. Assim eu já fico mais sossegado, mas na próxima vez quero ver se trago minha mulher junto”, sorri.
Apesar da saudade ser um preço salgado a se pagar, Luis diz que não se imagina fazendo outra coisa. Especialmente, porque o talento para a calcetaria é um dom herdado do pai. “Ele começou a trabalhar já um pouco tarde, com uns 60 anos, e faleceu com 80. Nesse meio tempo ele que me ensinou. Comecei com uns 20 e poucos anos e, enquanto estiver na ativa, vou fazendo. Eu acho que é uma profissão que eu aprendi e tenho que dar continuidade. Outra coisa é que é bom, né? Você tá sempre conhecendo novos lugares, vê muita coisa, adquire muito conhecimento”, comenta com carinho.
Projeto
A história do piso da Praça Marechal Floriano é marcada por um longo processo de execução, se concentrando principalmente no final da década de 30 e metade da década de 40. Desde o desenho da praça, dos caminhos, dos espaços verdes ao próprio desenho de mosaico das pedras portuguesas que compõem o piso, tudo remete ao período de sua solidificação na história de Passo Fundo. Devido ao tempo de uso, porém, a preservação deste patrimônio histórico vinha sendo ameaçada nos últimos anos, com diversos pontos da praça em que buracos e pedras soltas passaram a impossibilitar o trânsito seguro dos pedestres.
A situação passou a chamar a atenção, principalmente, no ano passado. Isto porque, à época, o Município adotou medidas temporárias para corrigir as falhas do piso, promovendo a troca das pedras danificadas por paralelepípedos, em nada similares às pedras portuguesas originais, desconfigurando a arquitetura histórica de um dos pontos turísticos mais importantes de Passo Fundo. Diante da denúncia, a Prefeitura de Passo Fundo justificou que as medidas eram apenas paliativas e, em abril de 2021, anunciou que estava em um projeto de restauração de toda a praça Marechal Floriano, que viria a ser tirado do papel em março de 2022. A obra, que está sendo realizada a partir de medidas compensatórias, também contará com a qualificação dos bancos, monumentos, chafariz e banheiros.