Gerson Luís Trombetta ([email protected]), professor do Curso de Filosofia e do Mestrado em História da UPF
A tragédia "Édipo Rei", de Sófocles, é, sem dúvida, um dos marcos da cultura ocidental. Os personagens envoltos na trama ofereceram - e continuam a oferecer - referências preciosas para decifrar desde o modo como organizamos (ou deveríamos organizar) nossas escolhas morais até os traços psicológicos mais decisivos e que afloram desde a tenra idade. Um dos personagens particularmente intrigante da tragédia é Tirésias. Descrito como idoso, cego e sempre conduzido por um menino, Tirésias ocupa um papel central no desenrolar dos acontecimentos. Cabe a ele, depois de muito relutar, explicar a Édipo todos os eventos que culminaram na sua condição de parricida e incestuoso. O que impressiona é que Tirésias, apesar de cego, é um vidente; um vidente que "vê" aquilo que os videntes que "veem" não conseguem enxergar. O que os "olhos" de Tirésias enxergam é um conteúdo verdadeiro inacessível aos olhos comuns, um conteúdo que só é desvendado por alternativas não visuais
Por suas singularidades, a figura de Tirésias oferece um contraponto à cultura moldada na visualidade, traço típico do ocidente. Se examinarmos de perto as mitologias que explicam como o homem adquiriu a capacidade de conhecer, vamos encontrar, com frequência, símbolos e situações que remetem ao enxergar. Esse é o caso de Prometeu que, na mitologia grega, rouba o fogo dos deuses para entregá-los aos homens. Estes, por sua vez, passam a enxergar, saindo da condição de ignorantes. É o que observamos, também, no Gênesis quando Adão e Eva, ao comerem o fruto da árvore proibida passam a notar que estavam nus. Saindo do terreno da mitologia encontramos a ênfase na visão tanto nas teorias clássicas do conhecimento como em expressões típicas do cotidiano. A expressão "só acredito, vendo" funciona como uma decisão que a "visualidade" é o único critério legítimo para assumir algo como verdadeiro. Ficaríamos um pouco surpresos se alguém dissesse, por exemplo, "só acredito, ouvindo".
Mas será a visão o único caminho para ter acesso à verdade? E quanto a Tirésias, podemos aprender alguma coisa com ele? Sobre isso gostaria de propor uma breve analogia. A música é um dos caminhos capazes de colocar, ao alcance de nossos sentidos, um conteúdo de verdade não visual. Suas estruturas realizam a apresentação de pensamentos que não podem aparecer de outro modo senão em forma de sons. Imaginemos um breve tema musical como o que permeia a conhecidíssima Nona Sinfonia de Beethoven. Imaginemos esse tema na mente do compositor. Qual seria a maneira mais adequada para comunicá-lo? Qual seria a maneira mais adequada para torná-lo inteligível aos outros? Alguém poderia argumentar que, para este fim, existe o recurso visual da partitura. Mas, é bom lembrar, o que está na partitura é apenas uma representação da música e não a própria. Quando compreendida como uma estrutura complexa de pensamentos "invisíveis", a música ganha uma força cognitiva tão poderosa quanto um cenário visual. Entender a música como expressão articulada de pensamentos exige, como contrapartida, um "ouvido vidente". O principal obstáculo para tomarmos os pensamentos musicais como algo a ser "lido" é a convicção bastante arraigada de que a música é simples expressão de sentimentos. Entende-la como tirésica, como "vidente cega", só é possível quando remodelamos a hierarquia dos nossos sentidos e colocamos a escuta, e todas as suas exigências, como protagonista.