Pouco antes de completar 55 anos, o poema que inaugurou o último grande movimento literário do século 20 ganha agora as telas do cinema. Ao abordar a polêmica por trás da obra de Ginsberg e sua saga de transgressão e liberdade ao lado de outros ícones da geração beat, o filme foi responsável pela abertura do Sundance Festival - o mais importante do cinema independente, com encerramento neste domingo - e demonstra o potencial de imortalidade de uma verdadeira obra-prima quando criada por uma mente anos luz evoluída
Marina de Campos ON
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus!, começou a gritar um judeu de figura estranha e voz imponente na noite de 13 de outubro de 1955, parando para respirar somente cinco mil palavras depois, como quem morre a cada verso mas sempre volta a ressucitar. "Ninguém nunca havia sido tão ousado na poesia, uma barreira tinha sido rompida. Mas nenhum de nós queria voltar para o cinza. Nós queríamos voz e nós queríamos visões. Havíamos atingido um ponto sem volta - e estávamos finalmente prontos para ele", explica o também poeta Michael McClure, que não é qualquer um a dizer isso, pois esteve naquela velha oficina mecânica transformada em galeria de arte e viveu tudo até a última consequência. Se embrenhou por entre uma centena de jovens enlouquecidos a uivar de excitação em completo descompasso, as mãos para cima, os punhos cerrados e a garganta fisgada pelas palavras desconexas em ritmo alucinado, um transe interminável arrastando-os para o fundo do poço que é a mente de um gênio como Allen Ginsberg. O demônio que destruiu milênios de rima em um só fôlego, o deus que vomitou em uma sociedade condenada a prosa louca dos anjos - ali mesmo, aos gritos.
A primeira noite da inundação beat
Vista por muitos como o marco inicial da literatura beat, a leitura dramática de Uivo para Carl Solomon na penumbra da Six Gallery, em San Francisco, é certamente um daqueles momentos raros, mas decisivos para a humanidade, quando todas as forças cósmicas e vibrações revolucionárias convergem em um só ponto, concentram sua potência por alguns segundos e explodem de repente como em um furioso milagre: uma nova forma de pensamento vai se espalhar como pólen dali em diante, vai contaminar o mundo inteiro, recrutar soldados anônimos, fazer cessar fogo e declarar infinita guerra à toda e qualquer forma de pudor. Loucos, famintos, histéricos e nus, aqueles homens nem imaginavam o que estavam fazendo. Decididos a deixar jorrar de si aquele oceano ácido, um lago de pensamentos cristalizados no momento exato de sua concepção, ícones de uma geração e merecedores do título segundo a benção espiritual de Blake, inauguraram bem no meio da década de 1950 o último grande movimento literário da história: a definitiva destruição do formal e a completa personificação da liberdade do pensamento. O verdadeiro uivo agonizante de uma força embalada pelo beat.
A matéria completa na edição do caderno Segundo desse final de semana (30-31)