A arte de escrever para amigos não identificados

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Dr. Altair Alberto Fávero
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Em seu polêmico escrito Regras para o parque humano, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, lembrando o escritor Jean Paul, explica que livros "são cartas redigidas a amigos, apenas mais longas". Com essa afirmação, Sloterdijk explicita precisamente a natureza e a função do que foi o humanismo na sociedade ocidental: "A comunicação propiciadora de amizade realizada a distância por meio da escrita". Isso significa que quando tomamos contato com os livros e escritos em uma determinada área do saber, estamos efetivamente nos aproximando e apropriando das "cartas de amizade" que os antecessores nos enviaram para que agora pudéssemos ter acesso ao que eles descobriram e sistematizaram. "Faz parte das regras do jogo da cultura escrita que os remanescentes não possam antever seus reais destinatários", expressa Sloterdijk, e continua: "Não obstante, os autores lançam-se à aventura de pôr suas cartas à caminho de amigos não identificados".
A leitura das longas cartas, por sua vez, depende da "boa vontade" e do interesse dos destinatários não identificados que podem ou não se sentir atraídos em ler tais mensagens redigidas em outras circunstâncias e que agora poderão ajudar a discernir certos fatos e problemas que perturbam o contexto atual. Por isso, Nietzsche tem razão quando diz que a escrita é o poder de transformar o amor ao próximo, ou ao que está mais próximo, no amor à vida desconhecida, distante, ainda vindoura. "A escrita não só estabelece uma ponte telecomunicativa entre amigos manifestos vivendo espacialmente distantes um do outro no momento do envio da correspondência", afirma Sloterdijk, "mas também põe em marcha uma operação rumo ao que não está manifesto: ela lança uma sedução ao longe, com o objetivo de revelar ao amigo desconhecido enquanto tal e levá-lo a ingressar no círculo de amigos".
As preciosas reflexões de Sloterdijk sobre essa íntima ligação entre escrita e amizade estão ligadas á tentativa de explicar as razões pelas quais o humanismo se instaurou e se solidificou na tradição ocidental. De forma análoga podemos dizer que essa relação se estabelece no momento em que tomamos a decisão de publicar um conjunto de ideias que nos são aprazíveis e desejamos compartilha-las com outros "amigos não identificados". Não sabemos ao certo quais serão os destinatários desses escritos. Não sabemos como tais escritos serão recebidos e interpretados, muito menos a repercussão que os mesmos poderão ter em outros meios diferentes dos quais estamos acostumados. No entanto, nossa intenção de fundo é compartilhar com um público mais amplo, com destinatários não identificados, aquilo que, por um certo tempo, foi objeto de investigação restrita por quem tem paixão pelo pensamento filosófico.
O ato de escrever um texto é, antes de tudo, um longo processo de organização, leitura, investigação, disciplina, método e determinação. Escrever é por no papel um pensamento próprio, auxiliado por diversos autores ("amigos" do passado ou presente) que contribuem com seu pensamento sistematizado em forma de escrita. Conforme o dizer do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, em seu livro A arte de escrever, "uma grande quantidade de conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor do que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada". É por isso que a escrita filosófica requer um rigoroso processo de investigação, sistematização e elaboração que não se restringe ao simples domínio de técnicas artificiais de elaboração textual, mas se projeta na primorosa comunicação dialógica com amigos não identificados do presente e do futuro.

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