Assim como Cézanne está para a pintura impressionista, Mark Twain pode não ser tão popular quanto os que vieram depois, mas é considerado o grande pai de todos eles. Um dos ícones máximos da literatura norte-americana, o autor de As aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn traduziu a essência do país de forma a inspirar figuras como Hemingway e Faulkner, deixando uma herança que chega até os dias de hoje, quando se completam cem anos de sua morte. Nascido durante uma das passagens do cometa Halley, passou a vida dizendo que morreria quando o fenômeno retornasse. Em 21 de abril de 1910, a profecia se cumpriu: o cometa surgia nos céus e Twain deixava o mundo rumo à eternidade.
Marina de Campos ON
A fantástica história da vida de Mark Twain é digna de seus melhores romances. Se tivesse sido fruto da desenfreada imaginação de meninos pregadores de peças como Tom Sawyer e Huckleberry Finn, mesmo assim soaria inverossímil. Se colocada nas palavras de um daqueles típicos norte-americanos do interior, de forte sotaque e trejeitos arrastados quando deseja contar uma lenda na qual realmente acredita, ainda assim seria de se duvidar. Mas será possível que, fora dos livros de ficção mais inocentes, aqueles datados do século 19, passados às margens do rio Mississipi, algo de tão extraordinário possa acontecer? A vida e a morte de Mark Twain são a maior prova de que nada supera a realidade: autor de aventuras inconcebíveis, tem na própria biografia alguns dos episódios mais intrigantes que em uma obra-prima poderiam constar.
Órfão de pai desde muito cedo, foi tipógrafo, piloto de embarcação e madeireiro ainda na adolescência, chegando até mesmo a procurar ouro na Califórnia pouco antes de especular com ações no momento em que as fronteiras ianques se dilatavam para o oeste. Entre muitas profissões, foi na literatura que se encontrou, apesar de sua irremediável paixão pela ciência alimentada pela inusitada amizade com Nikola Tesla, o cientista croata conhecido por "espalhar luz sobre a face da Terra".
O mais interessante, nessa miscelânea de ofícios exercidos por Twain, é o fato de que a maioria de seus livros foi escrito entre uma jornada e outra, com temas que acabavam se relacionando com o que fazia e traduzindo com perfeição o cotidiano do mais genuíno povo norte-americano.
Seu primeiro livro, Innocents Abroad, foi escrito durante uma viagem à bordo de um cruzeiro rumo à Europa e se transformou em um cômico guia que se recusava, de maneira explícita, a venerar as artes e convenções do Velho Continente. A publicação seguinte, Roughing It, revelava as experiências dele como mineiro em Nevada, onde permaneceu longos períodos no campo com seus colegas de serviço - matéria-prima preciosa para um escritor que se tornou um dos melhores em transpor para as páginas a naturalidade e o coloquialismo da vida real. Depois do fracasso nas minas, passou a trabalhar em jornais de Virginia City, precisamente na época em que deixou de ser Samuel Langhorne Clemens para se tornar Mark Twain.
A matéria completa no Segundo Caderno deste final de semana (17 - 18)