Quando Dylan virou Judas

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Há exatos 44 anos, Bob Dylan fechava sua lendária trilogia com o que veio a ser também sua obra-prima: o disco Blonde on Blonde. Junto com Bringing it All Back Home e Highway 61 Revisited, o álbum representa o ápice criativo do músico em uma complicada fase de transição que o tirou do cenário estritamente folk e o lançou entre os maiores da história do rock'n'roll. Apenas um dia após o lançamento do clássico, Dylan era chamado de Judas pela plateia em sua mais antológica apresentação

Marina de Campos ON

A tensão é evidente. Desde a calçada em frente ao teatro até os bastidores do palco, tudo cheira à raiva e desconfiança, a espera é violentamente angustiante, a multidão de fãs está descontrolada e o maior compositor de todos os tempos também. Com a aparência intranquila de um herói à base de anfetaminas, Bob Dylan vai dar a cara à tapa a uma indignada plateia apenas um dia após o lançamento do disco que o transforma de vez em carrasco para os defensores do folk e grande mártir da história do rock. Ele não teme, pois sabe que, passadas algumas décadas ou milênios, tanto faz, será enfim compreendido e promovido à categoria de gênio - seja vivo ou seja morto. Hoje a gente sabe exatamente como tudo aconteceu, mas naquela noite de 17 de maio de 1966 ninguém poderia prever. Quando o silêncio reinou entre duas canções e aquela voz vinda da plateia disparou o seu cortante "Judas", foi como se o músico tivesse sido atingido no peito, morrendo em pleno palco. Após dois segundos que duraram a eternidade, ele voltou à vida, dessa vez imortal: "I don't believe you. You're a liar". A partir desse dia, ninguém mais poderia julgar Dylan sem pensar em sua coragem ou invejável determinação. A partir desse dia, Bob Dylan se tornou um deus.

Sozinho contra todos

Nesta que se tornou a sua mais antológica apresentação - realizada no Manchester's Free Trade Hall logo após a chegada de Blonde on Blonde às lojas -, toda a energia transgressora e o espírito inegavelmente visionário de Bob Dylan se concretizou. Sem deixar de apresentar um primeiro ato acústico, integrado por canções folk que acalmaram levemente o ânimo dos inimigos-fãs, ele levou todos à loucura na segunda parte do show, eletrificando até a alma dos que estavam presentes com faixas devastadoras como Obviously 5 Believers e Like a Rolling Stone. Antes mesmo do fim da apresentação, conseguiu provar ao mundo que o que iniciou em Bringing it All Back Home, continuou em Highway 61 Revisited e chegou ao ápice com o álbum recém-lançado era nada menos que uma trilogia insuperável e definitiva, uma espontânea elevação de nível que dificultou a vida de todos aqueles que vieram depois.

Mas nada disso aconteceu de repente ou de forma natural como quando os fãs estão do seu lado. O mundo estava contra ele, havia condenado sua vontade de mudar com os piores argumentos, "traidor", "vendido", "Judas", quando na verdade tentava apenas ser fiel a si mesmo pelo bem da música. Mesmo sendo o sétimo álbum de sua carreira, era como se fosse o primeiro, já que foi imediatamente soterrado por toda sorte de críticas e pouquíssimos elogios. Afinal, ninguém entendia o que ele estava fazendo: de cantor de protesto munido apenas de um violão, Dylan se transformou em um artista versátil, um contador de histórias e um verdadeiro astro do rock disposto a chocar o quanto fosse necessário. Difícil de entender à primeira vista, a mudança do compositor demonstrava uma genialidade incapaz de ser contida em um gênero, um impulso que o acompanhou durante toda a vida e o fez quebrar todos o estereótipos em que poderia se encaixar, até se tornar o mito que ainda hoje influencia qualquer um a pegar um violão.

Blonde on Blonde: da água para o vinho
Depois de algumas tentativas de entrar em estúdio ainda em 1965, Blonde on Blonde começou a nascer precisamente em 14 de fevereiro do ano seguinte, quando Dylan pisou nos estúdios da gravadora Columbia, em Nashville, e tudo mudou da água para o vinho. Com exceção da dupla de guitarristas All Kooper e Robbie Roberton, todo o restante da banda foi substituído por um imbatível time de músicos perfeitos para cada um dos momentos que o disco teria. Além da equipe de qualidade, o tom das faixas tinha passado do "som de garagem" do disco anterior para algo muito mais maduro, envolvendo blues, country, rock e folk de primeira, o que também marcou o equilíbrio e a consistência que fizeram o disco tão famoso.

Essa boa fase rendeu ao músico excelentes 14 faixas, totalizando mais de setenta minutos de música e fazendo de Blonde on Blonde o primeiro álbum duplo da história do rock. Entre essas canções, estão alguns dos maiores sucessos de toda sua trajetória, clássicos como Rainy Day Women #12&35, I Want You, Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again, Pledging My Time, Absolutely Sweet Marie e a incrível Sad-Eyed Lady Of The Lowlands. O que nos leva direto a outro ponto interessante: o estranho título do trabalho e de todas as suas faixas. De acordo com Howard Sounes, biógrafo de Dylan, apesar de excêntricos, os nomes surgiram da maneira mais natural. "Enquanto estavam mixando, ficamos sentados por ali e o produtor entrou e perguntou 'como você quer chamar esta?' E Bob foi dizendo os títulos um de cada vez, ali mesmo. Associação livre e tolice, tenho certeza, foram componentes muito importantes", brinca Kooper, guitarrista que depois integraria a The Band.

Frequentemente colocado entre os dez discos mais importantes da história do rock e tachado pelos fãs como a grande obra-prima do músico norte-americano, Blonde on Blonde é revolucionário do início ao fim. A deliberada escolha de uma foto tremida para a capa, a ousadia em conceber um álbum duplo, as letras que vão da mais pura declaração de amor ao lamento mais triste passando pela diversão desenfreada até chegar ao protesto contra a hipocrisia e logo voltar à paixão sem dar satisfação a ninguém, e não só isso, mas também a mais completa liberdade na hora de entrar em estúdio e fazer uma música durar onze intermináveis minutos sem que nem os próprios músicos soubessem disso, isso para não falar da força arrebatadora presente em cada acorde sem importar o estilo de sua melodia ou ainda a mais perfeita personificação de uma alma eternamente inquieta e elevada demais para este mundo. Mas tudo isso diz muito pouco sobre o trabalho lançado pelo músico em 1966. Melhor mesmo é escutá-lo com a consciência de que Bob Dylan foi o melhor de todos e o sincero sentimento de que ainda é.

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