Se a verdade fosse mulher - 1

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Marcelo Doro
Professor da área de Ética e Conhecimento da UPF


"Se a verdade fosse mulher, seria justificado suspeitar então que os filósofos, sendo dogmáticos, pouco entendiam de mulheres?" Com essa provocação iniciou Nietzsche o prefácio de Para além do bem e do mal, obra em que desenvolveu uma aguda crítica ao dogmatismo presente no pensamento filosófico ocidental, há tempos prisioneiro da busca por conceitos puros e perenes. Decidido a pensar o mundo circunstancial e transitório em que vivemos, o filósofo atacou veementemente esse modelo dogmático de pensamento e sua pretensão de afirmar verdades absolutas. Para ele, não passa de ingenuidade a crença de que se possa atingir a realidade objetiva de algo, sem a deturpação natural e histórica da perspectiva humana.

A identificação da verdade com a mulher vem assinalar esse entendimento mais flexível acerca da verdade. Em oposição à pretensão dogmática de possuir verdades plenas e definitivas, a verdade é apresentada como algo que se esquiva, que não pode ser apanhada em plenitude e nem possuída em definitivo. Tais seriam também as características do feminino. Tal qual a mulher, a verdade é aquilo que nunca está completamente acessível; aquilo em relação a que nunca se pode estar absolutamente certo; aquilo que nunca é tão simples.

No mundo da especulação filosófica, a busca de conceitos puros, transparentes e definitivos, no entender de Nietsche, pouco revelou sobre a natureza da verdade. O filosofo, para o ser de fato, tem de reconhecer e considerar atentamente a parcialidade e a transitoriedade da verdade. Tem, portanto, de reconhecer na verdade aqueles elementos simbolicamente associados ao feminino, a saber, a potencialidade para o disfarce e a transformação. A verdade-mulher está marcada pelo aspecto da não transparência, da simulação. Ignorando isso, o dogmático se engana em relação à verdade tanto quanto se engana em relação às mulheres aquele que julga compreende-las plenamente.

Nietsche teve grande apreço pelas mulheres, apesar das duras considerações que lhes dirigiu. Em Ecce homo, obra autobiográfica, consta uma síntese do seu ambíguo sentimento em ralação ao sexo oposto: "Ah, que perigoso, insinuante, subterrâneo bichinho de rapina! E tão agradável, além disso!...". Talvez ele tenha exagerado um tanto suas considerações sobre o feminino devido a suas experiências pessoais - foi recusado nas duas propostas de casamento que fez. Ou talvez ele fosse mesmo, como sugeriu em várias ocasiões, um profundo conhecedor da psicologia feminina. De qualquer modo, sua leitura do feminino veio a calhar para uma caracterização da verdade que ele quis fazer aparecer, em oposição ao dogmatismo: a verdade como elemento esquivo, como insinuação; e mesmo assim atraente, desejável.

A analogia nietzscheana da verdade-mulher tem o mesmo intuito da metáfora de Voltaire, segundo a qual "o estudo da metafísica consiste em procurar, num quarto escuro, um gato preto que não está lá". O gato preto de Voltaire são as verdades absolutas perseguidas pelo pensamento metafísico. O quarto escuro onde elas são procuradas corresponde ao mundo ideal das formas transcendentes, puras e perenes; um mundo que só existe na especulação, e que não permite ver com clareza, muito menos o que não está lá, quer dizer, muito menos as verdades do mundo humano, transitório e finito.

Misturando a analogia de Nietzsche com a metáfora de Voltaire surge a possibilidade de se pensar a verdade enquanto uma mulher num quarto escuro. E, contudo, não seria melhor a sorte da filosofia dogmática, empenhada em cortejar uma mulher que não está lá.

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