Nada mais importa

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A Copa do Mundo é um evento de proporções tão grandiosas que, nesta semana, até mesmo o suplemento de cultura de ON se rendeu ao futebol. Em edição especial inteiramente dedicada ao torneio, o Segundo viajou pela história recente da África do Sul, conheceu algumas curiosidades de sua cultura local, descobriu momentos decisivos para a trajetória das Copas e traçou uma ponte entre a literatura e o futebol – tudo para colocar você em sintonia com aquilo que, durante um mês, vai ser o grande centro de todas as atenções

Marina de Campos ON

    Quando Desmond Tutu subiu ao palco do show de abertura da Copa do Mundo 2010 e disse a seguinte frase: “Mandela está em Joanesburgo e, se gritarmos alto, ele vai nos ouvir”, sendo logo seguido por um emocionante vídeo  exibido nos telões não apenas para as milhares de pessoas ali presentes, mas para um mundo inteiro virtualmente conectado, foi impossível não pensar na figura de um quase centenário e ainda sorridente Nelson Mandela, provavelmente sozinho, sentado em seu escritório ou algo que o valha, apreciando de longe os ecos de uma revolução que ele começou a ver dar resultados há vinte anos e que, hoje, termina de se concretizar.
    Se, num passado não muito distante, a África do Sul era sinônimo de injustiça e segregação racial, nos próximos trinta dias ela vira palco para um dos maiores encontros de raças de todos os tempos. Nesse período, cidadãos das mais diversas etnias terão as mesmas chances de vencer e, por meio do futebol, o grande sonho desse senhor que passou 27 anos na prisão para depois se tornar presidente vai finalmente se realizar. Em campo, nenhuma diferença: o que está mesmo em jogo aqui é a tardia liberdade de uma nação e o reconhecimento dessa incomparável vitória perante todo o universo.

Ninguém disse que seria fácil, ninguém nunca disse que seria tão difícil

    Mas quem disse que, depois de tanta dificuldade, isso seria fácil? Na vida de Nelson Mandela, nada é simples ou coerente. Nascido em uma tribo africana, criado em uma escola metodista de elite, convertido em guerrilheiro e preso por várias décadas, solto e logo em seguida eleito presidente  – aos 91 anos, ele bem que merecia um descanso. Com os preparativos para a primeira Copa do Mundo sediada no continente africano, era de se imaginar que esta semana fosse uma das mais felizes e gratificantes de sua vida, já que se revela uma espécie de missão cumprida depois de tanta luta. Mas não, pois uma vida assim tão grandiosa e cheia de episódios cinematográficos é incapaz de oferecer um momento de felicidade sem uma dose de sofrimento, como que para testar mais uma última vez a força de um homem que já aguentou a tudo. Na manhã desta sexta-feira, Nelson Mandela não compareceu à cerimônia de abertura dos jogos da Copa do Mundo porque estava de luto. Na noite anterior, um acidente de carro levou a vida de sua jovem bisneta Zenani Mandela Junior, e fez descer novamente sobre a alma do tão famoso bisavô o véu negro da desgraça que sempre o acompanhou.

Um homem maior que a própria história
    Quando se fala na história recente da África do Sul, não há como fugir do Apartheid e sua fantasmagórica herança deixada às seguintes gerações. Instituído em 1948, o regime segregacionista dividiu o país em dois: brancos de um lado, munidos de todos os direitos possíveis; negros do outro, na posição mais submissa que se conseguisse chegar. Se já era um absurdo a ideia de banheiros diferentes para brancos e negros naquele tempo, imagine isso em 1990, quando a vergonhosa lei finalmente acabou e Mandela foi solto depois de longos 27 anos de cárcere em condições sub-humanas, por ter decidido ainda jovem lutar com todas as suas armas pela liberdade dos verdadeiros donos de seu país.
    Realizada há exatos 20 anos, a libertação do homem que se tornou um dos maiores ícones da história do último século representou também o fim de um longo ciclo de governantes ingleses e, claro, brancos. Ao chegar à presidência, em 1994, Mandela concretizou um sonho coletivo, enraizado nas profundezas de um povo oprimido e injustiçado que, não fosse a determinação de figuras como ele, correria o inaceitável risco de acreditar-se mesmo inferior. Ao sediar um dos maiores eventos do esporte mundial assim como fizeram potências como Alemanha, França e Estados Unidos, a América do Sul se revela cicatrizada de todas as suas chagas e demonstra que, ao contrário do que dizem, a força de vontade de apenas um homem pode, às vezes, ser suficiente para revolucionar o futuro de toda uma nação.    

Bem-vindo à África
    Não é muito difícil entender o que está acontecendo no extremo sul do continente africano neste momento: semelhante ao Brasil em muitos aspectos, a África do Sul possui a mesma energia de alegria e inabalável esperança que caracteriza o povo brasileiro para o resto do mundo, já que suas histórias são igualmente marcadas por dificuldades, desigualdades sociais, problemas históricos, dominações estrangeiras e a involuntária criação de uma cultura de fé em cima disso tudo. Com cerca de 50 milhões de pessoas, o país é marcado pela sua diversidade. Berço de figuras destacadas no mundo inteiro, como a atriz Charlize Theron, o escritor J. R. R. Tolkien e o médico Christiann Barnard, responsável pelo primeiro transplante de coração da história, a África difere muito pouco do Brasil quando o assunto são movimentos artísticos populares, como a dança e a música.
    Claro que, em meio a essas comparações, é preciso lembrar da rica influência da cultura africana em solo brasileiro por meio da grande parcela afro-descendente da população. Sendo assim, também não é mentira dizer que a Copa do Mundo 2014, de certa forma, já começou. A genuína festa do povo que se instalou nas ruas de Joanesburgo nos últimos dias, embalada pelo som das vuvuzelas e pelo sorriso ofuscantemente branco dos cidadãos, não difere em nada da empolgação que os brasileiros carregam consigo para explodir em qualquer mínimo momento de realização. E o melhor momento para isso acontece daqui quatro anos, quando seremos nós os anfitriões. 

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