As intermitências da morte de José Saramago ou no dia seguinte, ninguém morreu

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Aos 87 anos, ele deu adeus ao mundo que ajudou a decifrar (ou confundir?): morreu na manhã de ontem José Saramago, escritor português que ganhou o prêmio Nobel de Literatura por obras-primas como As intermitências da morte, O evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a cegueira

Marina de Campos

"No dia seguinte ninguém morreu." Eu bem que poderia começar esse texto lamentando a morte de José Saramago, dizendo que se o mundo fosse justo, tudo seria como na ficção que ele mesmo construiu, que as coisas se sucederiam como em As intermitências da morte, quando a própria Morte, em pessoa, no seu apavorante manto negro em constante contraste com a foice afiada e cintilante, decidiu deixar de exercer sua macabra função e acabar com a maior e mais natural de todas as tradições: estava decidido, neste mundo ninguém mais morreria. Eu poderia dizer que esse episódio fantástico deveria ter sido verossímil realidade justo na data em que estava marcada a sua morte, que se a vida fosse coerente, o mais absurdo dos livros teria se colocado entre Saramago e a Morte, e assim nada disso teria acontecido. Bem que poderia lamentar e praguejar e amaldiçoar seu adeus, mas não há como: estamos felizes, aliviados e totalmente satisfeitos.
"A partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia." Em determinado momento de As intermitências da morte, a própria Morte, em pessoa, no seu apavorante... enfim, ela anuncia seu retorno colocando algumas regras, e avisa aos próximos a morrer o prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhes resta, algo como a "rescisão deste contrato temporário a que chamamos vida". Imagino que, se Saramago pudesse escolher, morreria.
Ele entendeu tão bem a lógica deste mundo que jamais aceitaria ir contra a natureza divina (com tantas facetas de diabólica) e recusar-se-ia terminantemente a contrariar o seu destino. A ele, nem a greve da Morte, nem a lucidez contagiosa, nem a cegueira branca, nem as palavras do próprio Messias. Cumpriu tão bem o papel que nos é dado lá no início, aquele de nascer, sobreviver (fazer valer sua própria existência), reproduzir-se e morrer, que não pode ser motivo de luto a sua partida.
A morte de Samarago, eu penso, deve ser celebrada com a alegria de um batizado. Pois quando um autor como ele morre - é inevitável -, seus livros renascem para a vida.

Sem medo da morte. Sem medo da vida
Na manhã dessa sexta-feira, dia 18 de junho, a internet foi imediatamente inundada pela inesperada notícia: aquele velho senhor de sobrancelhas muito grossas e olhar generoso apesar das palavras quase sempre pessimistas, aquele famoso escritor português que ganhou o Nobel e até anteontem ainda escrevia, aquele homem chamado José Saramago morreu. Tinha 87 anos e se refugiava em uma casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, desde 1993, quando teve de dar um tempo do resto do mundo por conta da publicação de um livro polêmico demais para aqueles que não sabem ler.
Lá vivia com a mulher, a jornalista Pilar del Río, e amargava uma leucemia. Em consequência de uma múltipla falha orgânica, traduzida pela família como uma despedida serena e muito tranquila, colocou-se ponto final em sua biografia: José Saramago, 16 de novembro de 1922 - 16 de junho de 2010.
Nascido na pequena aldeia portuguesa de Azinhaga, no Ribatejo, mudou-se para Lisboa com a família quando ainda era criança. Aluno brilhante, aos 12 anos precisou abandonar, por falta de recursos, o ensino secundário - mas não os seus estudos pessoais. Autodidata, seus primeiros ofícios foram de serralheiro e mecânico, mas somente durante o dia, já que gastava suas noites na Biblioteca Municipal de Lisboa, devorando livros e começando a traçar um caminho que o levaria ao hall dos maiores nomes da literatura mundial.
Como nada é simples na biografia desses gênios, lançou seu primeiro romance em 1947 e a partir de então passeou por outros gêneros, experimentando contos, crônicas, poesias e peças de teatro, até retomar novamente às extensas narrativas em meados da década de 1970, quando enfim encontrou o seu lugar.
As décadas de 1980 e 90 foram decisivas: Memorial do convento, o Ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira. Profundos, impecavelmente bem construídos, surpreendentes, diferentes de tudo o que já havia sido escrito. Famoso por sua escrita esquisita - não há outra palavra -, quase totalmente livre de vírgulas e entrecortada por pouquíssimos pontos, Saramago fez por merecer. Em 1998, ganhou o prêmio Nobel de Literatura porque, "mediante parábolas sustentadas com imaginação, compaixão e ironia, nos permite captar uma realidade fugitiva".
Mas para um homem como ele, alcançar o auge não significou parar. Tendo ainda muito a dizer, publicou mais sete livros, entre eles As intermitências da morte, em 2005, e Caim, no ano passado. Dessa trajetória incrível que não se explica em uma simples nota sobra a sua morte, ficam centenas e centenas de páginas preciosas, talvez a melhor síntese do que é a insana jornada que cada ser humano é desafiado a vivenciar neste mundo, como se nada houvesse depois.
E Saramago muito bem sabe, não há.

Ensaio sobre Saramago - A repercussão de sua morte pelo país
"Ele dizia que a morte é simplesmente a diferença entre o estar aqui e já não mais estar. Combatia as religiões com fúria, dizia que elas nos embaçam nossa visão. Mesmo assim não consigo deixar de pensar que adoraria que neste momento ele estivesse tendo que dar o braço a torcer ao ser surpreendido por algum outro tipo de vida depois desta que teve por aqui."
Fernando Meirelles, cineasta brasileiro que adaptou Ensaio sobre a cegueira para o cinema

"A Academia estava aguardando a informação de quando José Saramago viria ao Rio para providenciar a organização da sua posse na Cadeira 16 de sócio correspondente. A notícia nos deixou em estado de enorme tristeza. A próxima sessão acadêmica será dedicada à memória do grande escritor português, por quem sempre tivemos o maior respeito e admiração."
Marcos Vinicios Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras


"Quero dizer, simplesmente, que neste mundo há finais que também são começos, mortes que são nascimentos. E é disso que se trata. Ele foi embora, mas ficou entre nós."
Eduardo Galeano, escritor uruguaio

"O Saramago foi um amigo, uma pessoa que eu respeitava demais. Fizemos muitas coisas juntos, inclusive o livro Terra, que foi lançado no Brasil. Ele sempre foi um militante, um homem de esquerda, comprometido com todas as causas sociais, principalmente de Portugal e do Brasil. Sinto profundamente. É uma perda muito grande."
Sebastião Salgado, fotógrafo

"Para mim, representa a perda de um bom camarada. Nós nos dávamos muito bem, acho que não nos tornamos amigos próximos por falta de convivência. Para a literatura portuguesa - a literatura do mundo contemporâneo, aliás - representa a perda de um de seus maiores escritores em todos os tempos."
João Ubaldo Ribeiro, escritor

"José Saramago contribuiu de maneira decisiva para valorizar a língua portuguesa. De origem humilde, tornou-se autodidata e se projetou como um dos maiores nomes da literatura mundial. Nós, da comunidade lusófona, temos muito orgulho do que o seu talento fez pelo engrandecimento do nosso idioma. Intelectual respeitado em todo o mundo, Saramago nunca esqueceu suas origens, tornando-se militante das causas sociais e da liberdade por toda a vida. Neste momento de dor, quero me solidarizar, em nome dos brasileiros, com toda a nação portuguesa pela perda de seu filho ilustre."
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva

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