Nos porões do tempo, um jornal persiste

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Em comemoração ao aniversário de 85 anos de O Nacional, o Segundo visitou um lugar quase secreto, responsável por guardar com todo cuidado os resquícios da história local: o Arquivo Histórico Regional. Localizado em uma espécie de porão, bem no centro de Passo Fundo, o espaço mantém o acervo de ON desde a sua criação, em 1925

Marina de Campos

Uma edição de jornal impresso dura apenas um dia. Não importa o quanto seja importante o que está escrito, não interessa o quanto se tenha colocado de intensidade ou paixão em cada linha, jamais vai passar de um dia. Por quê? Amanhã é um novo dia, e um outro exemplar vai ter a chance da sua vida: rodar por vinte e quatro horas em mãos atentas ou talvez distraídas, arrancando expressões de alegria, ódio, revolta, surpresa - nunca indiferença - e fazendo de sua existência algo que transcende o papel. Mas o jornal dura somente um dia, depois morre em reformas de apartamentos, gaiolas de pássaros, ou, na pior das hipóteses, queimado pelas chamas de um fogão a lenha. É assim: ingrato, efêmero, antigo demais para sobreviver na era do instantâneo. Depois de um dia, apenas pó.
Tudo mentira, claro. Porque o jornal não se resume ao pedaço de papel, não se resume à edição de um dia, não se resume as suas pautas, não se resume à redação e também não se resume ao leitor. Ele é maior. Como uma entidade espiritual que paira sobre a humanidade desde sempre, encarnando da mesma maneira seja em megalópoles ou em minúsculos vilarejos, seguindo os acontecimentos com um faro sobrenatural, fazendo da realidade um pequeno e diário exercício de ficção. E toda essa força se faz crível - assim como, de repente, deparar-se com Deus - quando se adentra a uma sala e dá-se de cara com cerca de 30 mil edições arquivadas, empilhadas, recortadas, coladas, restauradas e salvas do fogo, da água e das traças por mãos humanas, habitantes de um porão que você nunca imaginou que existisse bem no centro da cidade.
Em outras palavras, um jornal com uma história de longas oito décadas como a de O Nacional pode persistir sob o peso do tempo se preservado em um lugar tão propício quanto o Arquivo Histórico Regional. Estrategicamente situado no trecho da Paissandu entre as ruas Teixeira Soares e XV de Novembro, onde antigamente havia o restaurante universitário da primeira sede da Universidade de Passo Fundo, o porão que hoje abriga preciosa parte da história de Passo Fundo é chamado de porão apenas por questão de estética textual - soa bem, mas não condiz exatamente com o que lá existe.
Fracamente iluminado por sua única janela (que deixa o visitante enxergar os transeuntes apenas da cintura para baixo), o AHR tem certa aura de nostalgia, uma óbvia ligação mística com o passado que se faz presente entre as estantes abarrotadas de livros e jornais, mas que não deixa esquecer em que milênio estamos pela inevitável presença da tecnologia. Com mesas de estudo bem posicionadas e uma organização interna impressionante - não importa o que você esteja procurando, rapidamente eles vão encontrar - o arquivo abriga em seu interior toda a produção realizada por diferentes redações de ON ao longo de três terços de século.
Fundamental para a confecção do suplemento especial de aniversário veiculado também nesta edição, resgatando a história do jornal de acordo com cada década, os exemplares de ON fazem companhia a atas, correspondências, intimações, processos, alvarás, certidões e atestados referentes ao Juizado de Paz, a partir de 1834, e à Câmara Municipal de Passo Fundo, desde 1857, além de mapas, registros de concessões, plantas de lotes rurais, relatórios, correspondências, documentação funcional e publicações na área de agricultura - todos documentos integrantes desse acervo capaz de contar a história da colonização do norte do Rio Grande do Sul por si só.
Mergulhados nesse universo por cerca de cinco meses, integrantes da equipe de redação acabaram por se fascinar com o lugar e - como se inseparáveis um do outro - com a própria história do nosso jornal. Do standard de apenas quatro páginas da década de 1930 até as edições coloridas em formato tablóide dos dias atuais, das quase sensacionalistas manchetes sobre a guerra até os layouts modernos que hoje acompanham cada edição, tudo é hipnotizante e repleto de saudosismo. Apaixonante por sua constante renovação - todo fechamento de edição é como uma morte, mas a chegada em cada casa e nas bancas é um recomeço -, o jornal pulsa de vida nesse porão onde está bem guardada a história local e faz com que nós que o produzimos dia após dia tenhamos a vontade de fazer cada vez mais. Pois, como se vê no Arquivo Histórico Regional, uma edição de jornal impresso não dura somente um dia, mas sim uma vida inteira para quem o lê.

ON digitalizado

O Arquivo Histórico Regional concluiu a digitalização dos volumes correspondentes à primeira década de edições do jornal O Nacional. Na sexta-feira (18), o coordenador do AHR, professor Eduardo Munhoz Svartman, entregou os DVDs contendo o material digitalizado ao diretor executivo de ON, Múcio de Castro Neto.
O Nacional entregou seu acervo de jornais ao Arquivo Histórico, com o compromisso de que fosse digitalizado, trabalho que vem sendo desenvolvido há mais de um ano. O professor Eduardo explicou que o processo de digitalização é complexo porque as coleções mais antigas precisam passar por restauração. Esse trabalho é feito pela mestre em História, Sandra Bevegnú, e pelo também mestre em História Benhur Jungbeck.
Múcio de Castro Neto destacou que a digitalização do material possibilitará a socialização do conteúdo do jornal, já que até o momento a consulta era restrita, em função do estado de conservação do papel. Com o material digitalizado, ele pode ser consultado por mais pessoas ao mesmo tempo.
Nos próximos dias esse projeto estará entrando em sua segunda fase. A entrega dos DVDs coincidiu com os 85 anos de ON, comemorados neste sábado, dia 19.

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