Depois de vencer o Oscar de melhor filme estrangeiro, alcançar recordes de bilheteria e se tornar o filme mais visto dos últimos 35 anos em solo portenho, longa argentino O segredo dos seus olhos estreia em Passo Fundo neste fim de semana. Com trama baseada na obra de Eduardo Sacheri, produção dirigida por Juan José Campanella, o filme narra a história de um homem que revê escolhas de sua vida quando decide se aposentar e escrever um livro
Marina de Campos
Tudo, nos milhares de matizes possíveis entre o preto e o branco, indicava o óbvio: o longa alemão A fita branca sairia vencedor. Sua fotografia monocromática e a trama que, de tão misteriosa, chegava a beirar o macabro, o apelo das sombrias crianças em cena, o fato de se tratar de uma produção de época dirigida por um cineasta bem conceituado e, claro - argumento imbatível - o grande sortudo a arrebatar a tão almejada Palma de Ouro no último festival de Cannes. Sim, tudo levava a uma aposta certeira, um descarte imediato de qualquer concorrente, o simples cumprimento de um protocolo predeterminado. Mas eles não contavam com um detalhe: O segredo dos seus olhos.
Grande surpresa do Oscar deste ano, o longa argentino El secreto de sus ojos desbancou o favorito A fita branca sem que nem mesmo a própria equipe estivesse preparada. "Foi um milagre", afirmou o protagonista Ricardo Darín no dia seguinte à premiação, pois sequer esteve presente ao evento. "Conhecia os quatro concorrentes e sabia que era bastante difícil, são todos muito bons", explicou o ator em seguida, referindo-se ao israelense Ajami, ao francês O profeta e ao peruano La teta asustada, além do longa germânico, tido como vencedor antes mesmo da cerimônia.
Mais discreto que seu rival, o filme dirigido por Juan José Campanella surpreendeu o mundo por seu roteiro impecável e pela sensibilidade com que traduziu o que se consegue extrair apenas do mais profundo dos olhares.
Darín nu no Obelisco (acompanhado de Maradona?)
"Parece mentira. Amanhã, ao me levantar... acho que talvez comece a acreditar nisso", declarou o diretor Juan José Campanella a jornalistas, depois de ter arrancado risos da plateia do Kodak Theatre, em Los Angeles, durante o seu discurso de agradecimento, quando fez uma bem pensada menção ao fenômeno Avatar. "Quero agradecer à Academia por não considerar o Na'vi uma língua estrangeira!", brincou ele, entre nervoso e emocionado. Na entrevista coletiva, voltou a fazer a alegria do público ao aproveitar a oportunidade para lembrar o ator Ricardo Darín da promessa que fez caso o filme levasse o troféu: dar uma volta olímpica no Obelisco de Buenos Aires - completamente nu. Levando em conta as últimas declarações do atual técnico da seleção argentina em relação à possível vitória da Copa do Mundo deste ano, Maradona deve ter ficado sabendo disso.
A retomada do cinema argentino
Mas a conquista do Oscar é apenas um dos grandes momentos de uma trajetória que entrou para a história do cinema argentino. Por 18 semanas consecutivas no topo do ranking de bilheteria do país, na sexta semana O segredo dos seus olhos já era o filme nacional de maior arrecadação e hoje é considerado o mais visto dos últimos 35 anos, com cerca de 2,5 milhões de espectadores. O prêmio hollywoodiano, claro, ajudou a alavancar o sucesso, já que não é nada comum o reconhecimento das produções sul-americanas em eventos do gênero. Para se ter uma ideia, a primeira, e única, vez que um filme argentino havia conquistado um Oscar foi em 1985, com A história oficial, de Luis Puenzo, apesar de ter competido em 1974 com A trégua, 1984 com Camila, 1998 com Tango e 2001 com O filho da noiva, esse último dirigido pelo próprio Campanella.
Semelhante ao que viveu o cinema brasileiro na década de 1990, o cinema argentino vai ganhando força graças a tramas bem amarradas e abordagens despretensiosas, encontrando em suas peculiaridades o segredo para ganhar o público.
O passado jamais descansa
Desde que O segredo... tornou-se a melhor produção estrangeira do ano aos olhos do resto do mundo, Darín vem explicando o sucesso de forma muito simples: "Todo mundo gosta de ouvir uma boa história". Sabendo que no filme ele interpreta um ex-funcionário público que resolve começar a escrever, é de se imaginar que, nessas palavras, ator e personagem se confundam. No longa, ele interpreta Benjamín Espósito, aposentado do Tribunal Penal de Buenos Aires que decide escrever um livro sobre o caso que mais marcou sua carreira: o brutal estupro e consequente assassinato de uma jovem em 1974, até hoje sem solução.
Para ordenar as ideias, ele revê o homicídio e termina repensando decisões feitas no passado. Nessa busca, vai tentar descobrir se consegue encerrar o caso e alguns capítulos de sua própria vida. Os acontecimentos, assim como os outros personagens que povoarão a história, são apresentados aos poucos, como se saíssem de um conta-gotas controlado com extrema precisão pelo diretor Juan José Campanella.
Assim, pode-se dizer que o filme é uma mistura de gêneros. Talvez o carro-chefe deles seja o mistério policial, mas reduzi-lo a apenas isso seria simplificar demais. Com clima de cinema noir, O segredo... vai além e aprofunda os dramas pessoais de cada personagem de maneira eloquente, sincera e sensível, sem nunca deixar a atmosfera muita pesada nem deixar a trama leviana.
A montagem, assinada também por Campanella, dialoga com o passado, com a urgência da resolução do crime e com o presente, carregado da melancolia das oportunidades perdidas. Os personagens olham para trás e analisam as suas vidas, constatando que se transformaram naquilo que nunca planejaram ser. O equilíbrio que hipnotiza o espectador é quebrado somente quando necessário, como na cena que tem sido exaustivamente elogiada pela crítica mundial...
Clímax: O plano-sequência do estádio de futebol
... em que uma perseguição dentro de um estádio de futebol lotado rouba mais de 5 minutos do filme, sem, aparentemente, nenhum corte. Impressionante até mesmo para os filmes de grande orçamento, a já famosa cena rodada dentro do estádio Huracán não foi simples. Por se tratar de um plano-sequência extremamente longo, esse trecho em especial teve absurdos três meses de planejamento, três dias de filmagens e nove meses de pós-produção. Isso tudo por que a tal cena - que começa do alto do estádio, desce em meio à enorme torcida, entra pelos corredores e banheiros e enfim invade o campo - foi feita com apenas 200 figurantes e teve o desafio de precisar conectar a câmera que vinha de um helicóptero na grua posicionada na arquibancada.
No filme, a tradicional adrenalina das perseguições de carro a que nos acostumamos a ver nos blockbusters é muito bem substituída pela tensão da multidão e pelo fervor do jogo, redimensionando a ação a escalas mais humanas e realistas.
Extremamente elogiado por personalidades do mundo inteiro, entre elas a presidente argentina Cristina Kischner, O segredo dos seus olhos estreia em Passo Fundo como um pequeno milagre, a rara chance que o público daqui tem de entrar em contato com uma obra-prima distante da grande popularidade, mesmo que feita logo ali, em terras hermanas.
O segredo argentino
· 5 min de leitura