Em entrevista ao Segundo, artista plástica Rosana Bortolin fala sobre sobrevivência, instinto, pesquisa e arte para traduzir mostra Condomínios inteligentes, em exposição no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider. Integrada por dez peças que imitam ninhos e casulos dos mais diversos animais, a exposição traça paralelo entre o ser humano e a natureza
Segundo - Você diz que os casulos são uma analogia entre as habitações humanas e as de animais, sendo o corpo humano, por si só, também um ninho. Explique isso.
Rosana Bortolin - Observo as formas dos casulos, dos ninhos, observo o comportamento e a organização dos animais. Suas estratégias de sobrevivências são fantásticas. Enquanto comunidades, relaciono-as com os seres humanos, desde suas primeiras construções, que eram muito parecidas com os casulos que venho observando. Ainda hoje, em comunidades africanas, encontramos construções com formas semelhantes. Se formos analisar as construções de hoje, nós vivemos em covas, porém suspensas no ar. No processo de reflexão sobre a série Habitar ninhos, defendi em 2006, na ECA USP, a dissertação de mestrado Ninho, casa e corpo, em que desenvolvi e aprofundei teoricamente o meu fazer artístico. Durante esse processo, de idas e vindas à São Paulo, engravidei do meu filho menor e assim me senti o próprio ninho nômade, que carregava em si o micro cosmo latente, a potência de vida. Sentia meu corpo como uma casa nômade, além de estar vivenciando um processo de nomadismo e de certa forma de diáspora, pois todas as minhas referências naquele momento estavam no meu próprio corpo e na minha mala. Entretanto, as angústias desencadeadas pela vivência de perceber o corpo distanciado do lugar de aconchego, a casa, me levaram a entender a casa como uma segunda pele. A pele que fazia a mediação do meu corpo com o corpo maior, a Terra.
Segundo - Qual a mensagem passada pela exposição Condomínios inteligentes?
RB - Nessas indagações, reflito sobre o meu corpo e percebo uma série de comunidades que formam pequenos corpos dentro do meu. Assim também vejo a casa, comunidades de casas formam cidades, cidades formam estados, estados formam países e sucessivas formações formam a Terra. Quando exponho meu trabalho, não tenho a pretensão de passar mensagem para ninguém, procuro sublimar meus questionamentos e minhas inquietações como forma de me manter emocionalmente equilibrada, no entanto, dou-me o direito de utilizar a crítica para esse fim. Mesmo por que, para sobreviver nesta selva pós-moderna, aquele que não encontrar mecanismos de defesa e tentar de alguma maneira plasmar suas angústias, pode acabar doente, como está a nossa sociedade.
Segundo - Como funcionou o processo de concepção e realização da obras?
RB - Essa exposição surgiu da descoberta da imagem poética, da qual fala Gaston Bachelard em Poética do espaço. Em um dia de verão de 1999, deparei-me com uma vespa construindo sua casa na parede externa do meu quarto. Meu corpo consciente e operante ficou observando a maneira como aquele animal a construía. Passei a registrar esse processo em fotografia. Vale ressaltar que vivo na ilha de Santa Catarina, rodeada pela natureza. Entretanto, somente depois da descoberta da imagem poética é que passei a perceber inúmeros casulos ao meu redor. As vespas, para construírem seus casulos, utilizavam a mesma argila que eu utilizava para trabalhar a cerâmica. Passei a enxergar aqueles animais e a descobrir os seus casulos por todos os lados. Havia uma infinidade de tamanhos, formas e cores de argila nos casulos observados. Durante esse processo de descoberta surgiram inúmeros questionamentos relativos ao habitat, as moradias, ao comportamento do ser humano frente à natureza e todas as questões de hierarquia impostas pelo pensamento cartesiano da sociedade ocidental, que acredita que o animal não possui inteligência. Acredito que todo o ser vivo possui um certo tipo de inteligência, caso contrário não estaria vivo. Assim, passei a observar a técnica que os insetos utilizavam, passei a copiá-las e desse modo descobrir novas técnicas de modelagem aplicáveis às minhas cerâmicas. Passei a criar minhas próprias formas e, às vezes, posteriormente a sua modelagem, me deparava com casulos com formas idênticas às que eu havia feito.
Segundo - Qual o papel dos espelhos na exposição?
RB - Quanto à inclusão de espelhos, além de ser uma alusão, é uma crítica às construções da pós-modernidade com as superaquecidas cidades refletidas pelos vidros espelhados dos seus arranha-céus. Também é uma forma que encontro de me apropriar do espaço expositivo e também obrigar o espectador a participar da obra. Mesmo que ele não queira, faz parte da obra juntamente com os outros elementos que a compõe, e por ela são refletidos. Essa exposição também faz uma crítica ao conceito de condomínios inteligentes para os quais, na maioria das vezes, pela falta de consciência bem como pela perpetuação do pensamento de supremacia do homem sobre a natureza, devastam-se áreas enormes para fazer construções que se julgam projetos inteligentes.
Segundo - Um dos pontos que mais chama a atenção na sua trajetória é a constante preocupação com o estudo, esse trabalho de fusão entre e a arte e o meio acadêmico. Como isso influencia o seu trabalho e qual a importância disso para a valorização da arte como um todo?
RB - O artista, enquanto essência, trabalha no nível das ideias, é um sujeito inquieto que percebe e vê nas coisas e nos fatos possibilidades de mudanças. Essas mudanças são materializadas em forma de representação, o modo que cada artista elege para representar suas inquietações é que vai determinar sua poética e sua linguagem. O resultado plástico de suas ideias vai depender dos materiais escolhidos, dos métodos aplicados e das técnicas e tecnologias utilizadas, essas escolhas se dão muitas vezes por afinidades ou pela diferença, como meio de desencadear um processo de conquista. Sempre fui curiosa, a curiosidade me levou a frequentar cursos em muitas áreas das artes. Um aprendizado ia se somando ao outro, assim depois do bacharelado e da licenciatura em Desenho e Plástica na UPF, onde também fiz especialização em Cerâmica, fui a Porto Alegre, fiz cerâmica no Atelier Livre da Prefeitura, pintura com Fernando Baril, escultura com Vasco Prado e Xico Stockinger. Fiz o mestrado em Artes na ECA USP e hoje faço doutorado em Escultura pela Universidade do País Vasco, Espanha. A academia trabalha dentro de uma dialética de opostos. Ela sustenta teoricamente toda a produção artística existente e tem seus mecanismos de perversão, uma vez que não está desvinculada do sistema, necessita dele para se manter. Por outro lado, impulsiona o artista enquanto sujeito e o pressiona a estar se revendo o tempo todo e assim fomenta suas inquietações fazendo com que ele antecipe os acontecimentos para andar a frente deles e não atrás deles.
"Todo ser humano é um ninho"
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