Teatro dos desvairados

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Poderia ser alienação, alucinação, delírio, demência, desatino, insânia, loucura ou tresvario, mas é Desvario. Baseado no texto do autor chileno Jorge Díaz, o espetáculo da companhia Teatro de Emergência acontece em Passo Fundo neste domingo dentro da programação do Arte Sesc, trazendo ao público uma comédia com ares de assunto sério ao tratar de distanciamento e solidão. Em entrevista ao Segundo, a jovem diretora Tainah Dadda falou da influência do surrealismo de David Lynch e de René Magritte no teatro e das técnicas de improviso utilizadas em Desvario

Marina de Campos

Picasso disse que não se pode fazer nada sem ela. Arthur Schopenhauer definiu-a como a sorte de todos os espíritos excepcionais. Para Henri Lacordaire, é aquela que inspira os poetas e cria os artistas, e para uma velhice tranquila é preciso assinar um honroso pacto com ela, diz García Márquez. Ela é a força de Clarice Lispector e para Érico Veríssimo é dela que fugimos quando temos medo dos próprios pensamentos. Victor Hugo, no entanto, foi o mais radical de todos, e sentenciou: todo o inferno está contido nesta única palavra, a solidão.

Condição humana atemporal - como coloca a diretora Tainah Dadda -, a solidão não é tema de interesse apenas dos grandes nomes da literatura, mas também de uma companhia de teatro porto-alegrense que vê nisso a doença e a cura desta geração. No espetáculo Desvario, que eles trazem a Passo Fundo neste domingo dentro das atividades do Arte Sesc - Cultura por toda parte, eles falam de solidão sem grandes doses de drama (a peça é uma comédia), mas não deixam que o espectador saia do teatro sem um início de nó na garganta e muito no que pensar antes de dormir. Buscando ser aquilo que toda comédia deveria ser, Desvario conversa com o surrealismo e o nonsense para colocar em discussão o caminho que a humanidade vem tomando em direção ao isolamento.

Sem saber se está de partida ou chegada, um homem tenta resolver os problemas de seu desgastado casamento, quando um suposto amante de sua esposa surge reivindicando o lugar de chefe da família. Marcada por desejos frustrados e dificuldade de comunicação, a relação entre os três se complica ainda mais com a chegada de uma excêntrica mulher que diz não saber ao certo quem é. Juntos, os quatro personagens se reconhecem e se estranham na mesma medida, empreendendo uma luta contra a solidão e a falta de lógica do universo em que vivem. Para não dizer que é simples assim, a trama se passa em um aeroporto que poderia muito bem ser a casa deles, ou também qualquer lugar. Mais que isso, a trama não tem destino certo: a plateia é quem decide o final. Com ingressos a R$ 10 para estudantes e terceira idade e R$ 20 para o público em geral, o espetáculo acontece no Teatro do Sesc, neste domingo às 20h.

Entrevista com a diretora Tainah Dadda

Segundo - O elogiado texto do autor latino Jorge Diaz é um dos pontos fortes do espetáculo. De que ele fala e como isso é trabalhado pelo elenco?
Tainah Dadda -
Jorge Díaz é um dramaturgo conhecido pelo seu humor sarcástico e o jogo de palavras em sua obra. Desvario é uma comédia em que tais características estão muito presentes ao abordar a crise de identidade do indivíduo contemporâneo e, consequentemente, as dificuldades de relacionamento e comunicação com os outros. O espetáculo transforma os jogos de palavras com forte referência nonsense do autor em jogo cênico entre os atores, oferecendo assim várias possibilidades de leitura da trama da peça e das relações que se estabelecem entre os personagens. Na medida em que eles mesmos não têm certeza de quem são e o que fazem ali, a ideia não é concluir e fornecer uma resposta ao público e, sim, permitir que essa conjectura, questione a condição dos personagens e de si mesmo.

Segundo - Qual o papel do cenário - um aeroporto - no desenrolar da peça? O que esse lugar de passagem diz sobre a situação dos personagens?
TD -
Um aeroporto é um local de passagem, frio, sem identidade. Os personagens podem ser meros transeuntes desconhecidos, ou velhos amigos, ou uma família. Eles não sabem se reconhecer ou definir. Por isso, a opção de situar a ação da peça em um aeroporto visa acentuar a crise por eles vivida e a sensação de estranheza e absurdo no público, já que, embora o espaço de atuação seja sempre codificado como um aeroporto, muitas vezes os personagens agem como se estivessem em casa.

Segundo - Em determinados momentos, a peça utiliza-se do chamado Teatro-Esporte. Em que consiste essa técnica e qual o objetivo da sua utilização em Desvario?
TD -
A técnica do Teatro-Esporte data dos anos de 1970 através do professor de teatro inglês Keith Jonhstone. Ela se desenvolveu e deu origem à match improvisation, atualmente difundida e diluída pela televisão brasileira em programas de televisão em que grupos de atores/jogadores devem improvisar cenas ou situações a partir de sugestões da plateia, ou mestres de cerimônia, etc. No Teatro-Esporte, resumidamente, os atores/jogadores se dividem em dois times que competem ao realizar estas improvisações. Em Desvario, a técnica foi muito utilizada como processo de ensaios e criação dos atores, que se colocavam em estado de jogo, de competição. Assim, a preocupação com os aspectos psicológicos ou lógicos da narrativa são substituídos pelo lúdico. O resultado é que as soluções cênicas são mais fluídas, inusitadas e criativas e as possibilidades de interpretação de uma mesma situação dramática se ampliam, o que, no caso deste espetáculo, é uma vantagem, já que visamos desvelar mais e mais camadas de dúvidas, facetas e relações entre os personagens.

Segundo - Desvario é uma comédia baseada em assunto sério ou um retrato da vida (como ela é) com algumas doses de humor? Se fosse possível definir apenas um assunto sobre o que fala a peça, qual seria?
TD -
Desvario, sem dúvida, aborda com ironia uma condição humana atemporal: a solidão. Toda crise existencial dos personagens, a confusão e impossibilidade de estabelecer relações ou definir afetos é um retrato do mundo atual, mas também, fruto da condição intrinsecamente solitária das pessoas. Ao menos, é esta nossa visão.

Segundo - O texto é recente, a diretora tem apenas 26 anos, os atores do elenco são todos jovens e os problemas discutidos em cena são característicos da atualidade. Desvario representa um teatro essencialmente moderno?
TD -
A peça se desenvolveu, em princípio, como projeto de graduação da diretora em 2007, no curso de Teatro da UFRGS. E desde então, tinha a proposta de construção de uma linguagem fragmentada, com uma encenação ágil e uma mistura de referências que vão do popular Scooby Doo, passando por David Lynch, Rene Magritte e Woody Allen. Por tais peculiaridades, Desvario representa um teatro de acordo com seu meio e tempo.

O autor

Filho de espanhóis, nascido na Argentina e crescido no Chile, Jorge Díaz despontou como dramaturgo no berço do reconhecido grupo teatral Ictusi. Em 1964 viajou para a Espanha, onde deu continuidade à carreira de escritor. Em 1994, retorna ao Chile, onde viveu até sua morte. Desde o princípio, sua dramaturgia se destaca pelas inovações tanto no delineamento do conteúdo - geralmente de caráter socioexistencial - como pela forma. Por outro lado, ao analisar sua dramaturgia como um corpo global, Díaz atravessou as experimentações das vanguardas teatrais chilenas dos anos 1960, passou por um teatro inserido nas problemáticas espanholas e dos exilados, até chegar ao seu teatro mais atual, que, de certa forma, sintetiza as duas etapas anteriores. Desvario foi escrito ao 2002, apenas 5 anos antes de sua morte, acompanhando os dilemas da sociedade atual.

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