Pereio, eu te odeio!
Paulo César Pereio é o tipo de pessoa que todo mundo detesta. Arrogante, prepotente e sarcástico, nem por isso ele deixa de ser um dos maiores atores do cinema brasileiro, o que lhe rendeu o troféu Oscarito entregue pelo 38º Festival de Cinema de Gramado nesta semana. Em entrevista, fez o mesmo papel que Robert Crumb na Flip: mal humorado e sincero de doer, ignorou perguntas e falou dos assuntos que tinha vontade, entre eles o filme com Allan Sieber, Pereio eu te odeio
Marina de Campos
Ele é repulsivo. Sim, re-pul-si-vo. Alguém inconveniente e estúpido que não aprendeu a viver em sociedade. Um monstro. Grosso, indelicado, intolerante, desagradável - você escolhe. A voz rouca que poderia ser usada como fator de atração é despertada sempre e somente para as palavras mais ácidas, as mais cruéis, aquelas que desarmam a todos e o fazem parecer uma ameaça. Um homem carregando doses letais de sarcasmo e sinceridade. Combinadas, têm a potência de uma bomba. Ele é perigoso e precisa ser detido, alguém faça alguma coisa. Ao menos grite comigo: Pereio, eu te odeio!
Mas a verdade é que ninguém odeia de verdade tipos assim. À primeira vista é revoltante, mas aos poucos você vai sentindo uma espécie de inveja desse desprendimento, dessa superioridade liberta de qualquer senso de "o que deve ser feito em cada situação". Ele fala sempre a verdade, por mais dolorosa que seja aos nossos ouvidos acostumados com os bons modos da maioria. De repente, você se pega admirando um cara desses. Eu sei, é absurdo, mas acontece. De repente, você sente vontade de gritar pra ele, como ele mesmo fez naquele filme do Jabor de 1981: Eu te amo, p*rra!
O marginal do cinema marginal
Mas sua fascinante personalidade não é o único motivo para admirá-lo. Além da figura quase folclórica que se tornou com a chegada da velhice, ele é também um dos maiores atores do cinema brasileiro, ícone insuperável de uma de suas fases mais promissoras. Com uma filmografia composta por cerca de 70 títulos, fez história com as chanchadas doando aos seus personagens um pouco de sua própria canalhice e má reputação.
Nascido Paulo César de Campos Velho, em Alegrete, Pereio chega aos seus sugestivos 69 anos com toda força e, depois desta semana, com um reconhecimento a mais: na terça, o 38º Festival de Cinema de Gramado entregou ao ator o troféu Oscarito. "Ele elevou o humor dentro do cinema nacional. Com honra e orgulho recebo esse prêmio", discursou no palco, um pouco diferente da postura durante a tarde, em entrevista. "Quando fiquei sabendo, pensei: 'ah, Deus, vou ser vítima de mais uma homenagem, essas dadas quando o cidadão está prestes a morrer. Mas vou sobreviver a esse prêmio'", disparou. Era só o início.
Deus no céu, Crumb na Flip... Pereio em Gramado
Na semana passada foi o quadrinista norte-americano Robert Crumb quem chocou o público brasileiro por seu comportamento fora do comum durante a Flip 2010. Agora foi a vez de Pereio, que fez as vezes de Crumb no evento gaúcho e esbanjou à imprensa todo seu charme. Sem responder a qualquer pergunta - falando de assuntos diversos, à sua própria vontade -, deu opinião sobre política, futebol, juventude, quadrinhos e, sim, cinema.
"O grande vilão da atualidade é o heterossexual branco do sexo masculino", sentenciou logo de cara. Entre uma lembrança e outra, afirmou: "O cinema brasileiro morreu quando Collor se elegeu. Agora ele está ressuscitando". Numa linha de pensamento pouco coerente, Pereio ia tecendo seus comentários. "Quando eu era jovem em Porto Alegre assistia a três filmes por dia, isso porque só eram exibidos três por dia. Foi muito graças ao Festival de Gramado que começamos a ter contato com o cinema do Mercosul, o cinema argentino, por exemplo. Entre Dunga e Maradona, aliás, sou mais o Maradona. Quando venho para o sul e vejo essas araucárias todas, alguma coisa acontece no meu coração". Tudo embalado pela rouquidão da voz e o queixo quase encostando no peito para combinar com o olhar de desprezo já impregnado.
A audácia de ser gentil
Dispensando questionamentos a respeito de seu passado, falou do seu próximo projeto. O filme Pereio eu te odeio. "A linguagem dos quadrinhos se parece muito com o cinema, tem esse filme com o Allan Sieber agora, estamos com problema de verba para viabilizá-lo, pois as pessoas dizem que não vão financiar um filme que diz que 'odeia o Pereio', mas a ideia é minha, gosto muito desse sarcasmo, acho que ele amplia a nossa visão", explicou, se referindo ao documentário sobre sua vida e obra produzido pelo quadrinista gaúcho, ainda sem previsão de estreia.
Sobre o cinema brasileiro em geral, resumiu: "Acho que é fundamentalmente um cinema marginal, o leito desse rio é muito pouco nítido, eu só vejo as margens. O salário de uma estrela de Hollywood paga dois anos de cinema nacional. Tenho vontade de trabalhar com essa turma nova que está vindo agora, das escolas de cinema, pode ser que haja uma certa ingenuidade, mas eles dominam a técnica, tem aquele frescor de quem está começando", comentou o ator, que participou do filme de Patrícia Moran, Ponto Org - um dos concorrentes deste ano.
Para terminar, Pereio teve a audácia de deixar de lado apenas por um segundo a sua máscara de vilão e ser gentil, confessando: "Nunca me adaptei direito a essa atmosfera de festival, mas claro que estou feliz com essa homenagem apesar de toda a ironia quanto a isso. Me sinto recompensado, estou aqui na condição de um artista que aplaude sua plateia", finalizou, deixando sem ação aqueles que estavam prontos para endeusá-lo ou crucificá-lo. Inclusive eu.