O rei da ironia

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Duas crônicas assinadas por Tarso de Castro, respectivamente publicadas em O Nacional e O Pasquim após a sua morte

Com mamãe

    Como todo mundo sabe, o mundo se divide entre bons filhos e maus filhos. Eu poderia dizer que sou uma espécie de filho mais ou menos. Mas, como dona Ada é uma mulher determinada, que me pergunta apenas três vezes por dia quando vou aparecer para uma visitinha, eis que no início deste ano resolvi dar um pulo a Passo Fundo, não apenas para visitar mamãe mas, também, como velho pai solteiro, levar João Vicente para estar mais próximo desses seres que lhe despertam mais interesse que o pai, ou seja, os cavalos. Mas fui logo avisando a dona Ada:
    - Olha, só posso ficar uns dois dias.

    E lá fui eu, determinado a chegar, trocar carinhos, mostrar os cavalos ao João Vicente, deixá-lo montar enquanto eu ficasse com o coração na mão, e imediatamente partir de volta. Afinal de contas eu tenho que estar próximo dos centros políticos do país, especialmente na hora em que há uma mudança de guarda no Palácio do Planalto.
    - Tudo bem, respondeu ela.

    E lá fomos nós. Na verdade, fomos recebidos de uma maneira bastante informal, ou seja, nada se alterou no ritmo da casa, embora João Vicente achasse um pouco estranho o fato de estarem postos à mesa, no dia de nossa chegada, 36 tipos de entradas diferentes, 12 espécies de pastelões, sete tipos de lasanha, 40 modalidades de carne, 17 paladares diferentes de saladas verdes, 14 pratos compostos de legumes – isto na parte de sal. No que se refere a sobremesa tínhamos apenas doces de figo, laranja, melancia, melão, jaboticaba, tangerina, enfim, coisas simples. Os doces, bem, os doces também eram modestos, apenas quindim, ninho de ovos, ambrosia, torta de maçã, torta de nozes, torta de tâmaras, etc. e tal. E a prova maior de que não foi alterado em nada o ritmo da casa é que depois só tínhamos como opção café, chocolate e chás de apenas 32 procedências. Uma coisa simplesinha, portanto. Como simples, também, seria o café da manhã, contendo 20 qualidades de frutas, bolos, variados, é claro, pães de padaria, feito em casa, com sal, com açúcar, integral, sucos, etc., etc. Eu diria que tudo não passou da comida do trivial brasileiro.

    Ora, se há uma coisa que agrade a este que vos fala e a João Vicente, esta coisa é sinceramente a simplicidade, a inexistência de algo especial. Nisso, quero dizer, somos ideologicamente parecidos com Fernando Collor. E foi a simplicidade, esse apega à coisa simples, que nos comoveu. De maneira que transformamos as tais 48 horas em 72. Claro, não poderíamos também fazer desfeita. No dia seguinte, entretanto, para nossa surpresa, já não havia o mesmo volume de comida. Até comentei com meu filho:
    - Acho que a vovó está num período difícil.
    Mas filhos e netos são para estas coisas. De tal maneira que acabamos mais uma vez alterando o nosso tempo de estada. Não ficaríamos apenas as 72 horas mas sim 96. Ainda comentei:
    - Vovó vai ficar alegríssima com a notícia. E dona Ada, de fato, ficou realmente deslumbrada. Tanto que, ao saber da novidade, exclamou, alegremente, embora discreta:
    - Hum.
    E assim fomos ficando. Como sou paranóico, por certos momentos pensei até que não éramos mais merecedores, eu e João Vicente, de todas as atenções. Por exemplo: ninguém mais se ajoelhava na nossa frente. Foi duro admitir mas acabei percebendo que tudo não passou de uma coisa de minha cabeça.
    Mas como tudo que é bom acaba, resolvemos retornar para casa. Claro que ninguém comentou, mas se sentia no ar um certo desespero diante de nossa partida. Mas navegar é preciso, como se sabe. E lá fomos.
    A única coisa que não entendi até agora é como é que a dona Ada adivinhou que a gente estava prestes a partir. Pois só pode ter sido por isto que, já dois antes da nossa viagem, ela colocara nossas malas junto à porta.
    É o sexto sentido feminino, é claro.

O ser humano já chegou à Lua?

    Depois de uma viagem interminável, mais essa – pensou Neil Armstrong, quando o telefone tocou em seu apartamento isolado do mundo. Ele sabia perfeitamente que se tratava de uma chamada de Janet e isso o incomodava.
    - Afinal – raciocinou – Janet não sabe de nada a não ser os seus idiotas concertos, os seus teatros, os seus cinemas e a sua literatura – até poesia! - coisas que devem ser evitadas por todos aqueles que pretandam fazer alguma coisa séria ou digna.
    Armstrong sabia perfeitamente o que queria: nunca, em sua vida, deu-se a luxos como, por exemplo, examinar um quadro bem pintado ou uma poesia bem trabalhada. Seu passatempo? Ora, o passatempo de um homem que sabe de tudo: andar de avião. Se andar de avião não é sua atividade profissional? Exatamente. E daí? Existe alguma coisa no mundo além dos aviões?
    - Alô, Neil – falou Janet, ao completar-se a ligação, interrompendo o pensamento de Armstrong. - Não foi maravilhosa sua experiência?
    - Maravilhosa? - admirou-se Armstrong, depois de um minuto. - Não sei. Ainda não pensei nisso.
    - Como, Neil? - voltou Janet. - Você não pensou no fato de ter feito uma viagem à Lua?
    - Ora, Janet, você não quer que eu fique pensando em mil coisas a cada vez que meus superiores mudam meu roteiro de viagem, não é?
    - Mas, querido – observou Janet – você devia estar orgulhoso. Hoje, em todo o mundo, você é invejado por milhões de pessoas que gostariam de ir à Lua mesmo contando com a possibilidade de não voltar!
    - Isso é ridículo – respondeu Armstrong, começando a cansar daquela conversa de mulher. - Isso é apenas sonho de menino. Eu sou um adulto, Janet, e você sabe muito bem. São os mesmos que se lembram de tudo sob o ponto de vista pessoal. Você já pensou se eu quisesse saber o que aconteceu com as bombas que lancei durante as minhas 78 missões de combate durante a guerra na Coreia? Seria uma infantilidade, não é? Minha missão é lançar as bombas? Pois bem: do resto, não quero saber. Minha missão é pisar na Lua? Ótimo: não me interessa o resto.
    Ao sinal do chefe de Relações Públicas da NASA, Janet suspendeu sua conversa, dando lugar a seu filho Eric:
    - Alô, pai – falou o menino – você ficou com medo?
    - Nunca pense nisso, meu filho – respondeu Armstrong, mais entusiasmado. - Não tive medo, não, ninguém poderia ter medo de um simples acontecimento ligado à tecnologia. Seria como ter medo de usar uma batedeira elétricas. Não há perigo nenhum em se fazer um milk-shake, como não há perigo nenhum em dirigir uma astronave.
    E se Deus não quisesse? – voltou Eric.
    - Deus? - admirou-se Armstrong. - O que tem Deus a ver com a tecnologia. Um avião, uma aeronave é boa ou não é. Não deve haver riscos. Ou seria racional alguém arriscar a própria pele apenas para ir à Lua, ver a Lua? São coisas de meninotas bobas. Só se deve morrer quando isso for tecnicamente indispensável. Existe apenas uma coisa: a tecnologia.
    - E é bonito lá? - interferiu Eric.
    - Não sei, não me preocupo com isso, trata-se de uma missão e está acabado.
    - Mas você pulou de alegria...
    - Oh! Vamos limpar o mundo desses sonhos e dessas tagarelices sobre a Lua e outras coisas meu filho. Pulei porque aquilo fazia parte de minha missão. E como poderia eu saber – se me importasse – se a vista lá é bonita, se nem mesmo olhei para cima?
    - Está bem – respondeu Eric. - Então até logo, pai.
    - Até logo, Eric. E não se esqueça das vitaminas e seus exercícios: isto é muito importante para quem quer vencer.

(Esta história se inspira numa entrevista dada por Armstrong a Orina Fallaci e põe em dúvida o tão divulgado boado de que um ser humano já pôs os pés na Lua)

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