Nesta semana o Fronteiras do Pensamento viveu sua conferência mais ilustre. Recém-anunciado Prêmio Nobel de Literatura 2010, Mario Vargas Llosa atendeu a jornalistas, discursou no Salão de Atos da UFRGS, conversou com a plateia, concedeu alguns autógrafos e fez sua grande confissão: “Secretamente, todo escritor aspira muito mais que prêmios – sua ambição é desmedida. Minha vontade é ser lido no futuro como eu li Faulkner ou Vitor Hugo, estar junto destes imortais. Esse sonho profundo de ser grande como eles foram é algo que me condena a uma constante frustração”
Marina de Campos
Encontra-se em pé, à esquerda do palco, trajando terno, camisa branca e gravata discreta, num conjunto perfeito de cores e caimento dignos de sua pose de homem importante. Dizem que no aeroporto não houve sombra de assédio, mas é possível imaginar os olhares curiosos que o golpeiam a cada lugar por onde passa, culpa da aura de personalidade influente e cosmopolita que se destaca facilmente em qualquer multidão. Começa sua leitura sem cerimônia, num ritmo envolvente que seduz ao mesmo tempo em que requer total atenção – fácil distrair-se pela sonoridade e esquecer-se de processar o que realmente ele quer dizer do outro lado de seu fluente castelhano.
Sem querer derruba algumas das folhas que o guiam, abaixa-se distraído para juntá-las, se perde um pouco antes de recomeçar. Mais do que um Prêmio Nobel, ele é um velho homem de 74 anos que precisa de seus óculos de grau e de goles de água periódicos para ler bem a uma imensa, respeitosa e impressionantemente concentrada plateia. Pois não há sequer um som em todo auditório além da voz limpa e dançante de Mario Vargas Llosa, e quando este interrompe a si mesmo para tomar outro gole d’água de uma taça estrategicamente posta próxima de seu braço direito, é como se todos prendessem a respiração perante a ameaça do seu silêncio: só voltam ao normal quando ele retorna a falar.
Assim como no início da coletiva de imprensa, nos primeiros minutos da conferência seus cabelos brancos ainda estão impecavelmente alinhados, mas penteados um pouco para o lado com certo ar de elegante desapego. Daqui a pouco uma pequena mecha grisalha vai começar a cair por sua testa, fazendo lembrar o jovem e charmoso escritor de cabelos negros e olhar penetrante que um dia ele já foi. Pode não ter mais o frescor daquele tempo, mas conserva nas sobrancelhas marcantes e cheias de expressão a nuance mais atraente de seu antigo visual. Deixou de lado a juventude, como que em troca de uma maturidade de invejável conhecimento e plenitude – sem esperar que, a essa altura da vida, ainda fosse ter a estranha experiência de receber a maior honraria literária que a humanidade já inventou.
A conferência
“Há ambições que formam parte da vocação literária, e que muitos escritores nem mesmo ousam reconhecer.” De repente, foi possível sentir no ar que aí viria algo importante, algo como uma grande confissão. “Todo escritor, mesmo que secretamente, aspira muito mais que prêmios – sua ambição é desmedida.” Agora ele vai despir-se de qualquer sombra de falsa modéstia e dizer aquilo que todo verdadeiro escritor, mais ou menos conhecido, mas legítimo escritor de espírito, sente em seu mais profundo íntimo. “Minha vontade é ser lido no futuro como eu li Vitor Hugo, Faulkner, Flaubert”, assume Llosa. “E, por isso, tudo que escrevia no início pensava ser ruim, insuficiente, que talvez eu não tivesse talento. Mas descobri que Flaubert escrevia muito mal quando começou, e mesmo assim se converteu em um dos maiores com o tempo”, completa. “Esse sonho secreto, esse sonho profundo de ser grande como eles foram, é algo que me condena a uma constante frustração”.
Mais perto deles do que pode imaginar, o escritor peruano conduziu com a maestria a noite desta quinta-feira, 14 de outubro, marcada por sua conferência no Salão de Atos da UFRGS dentro das atividades do projeto Fronteiras do Pensamento. Chamado para falar sobre os caminhos da cultura, discursou por cerca de 20 minutos transitando por temas paralelos e oferecendo ao público alguns pensamentos notáveis. “A cultura pode ser experimento e reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia, e uma revisão crítica, constante e profunda de todas as convicções, teorias e crenças, mas não pode jamais afastar-se da vida real, da vida vivida. Assim, a cultura nos dá condição de compreender melhor esse abismo sem fundo que é a condição humana”, definiu.
Ao fim de suas palavras, ficou à disposição das dúvidas da plateia, voltando a temas recorrentes além das sempre surpreendentes declarações. “Gosto muito de reescrever o livro depois que finalizo sua primeira versão, é provavelmente a parte que mais gosto. Por isso digo que sou um reescritor”, contou, fazendo rir. “Não sei por que me deram o prêmio, gostaria de pensar que foi por minha obra. Que tenha sido de uma maneira consciente, não casual, por acidente... Mas também não importa, estou contente assim!”, brincou ainda.
Sobre um dos dilemas que lhe dizem respeito, foi inovador. “Penso que o livro eletrônico é uma realidade inevitável, e provavelmente num futuro próximo ocupará o lugar do livro de papel. Mas meu único temor é que o livro eletrônico leve a uma banalização da cultura, um pouco como aconteceu com a televisão, que, com o objetivo de chegar ao maior número de pessoas, perdeu-se em seu próprio rumo”, comparou com grande sabedoria. Questionado sobre o teor autobiográfico de sua obra, acabou com as suspeitas. “O ponto de partida de tudo que escrevo são minhas experiências pessoais. Absolutamente tudo que escrevo surge de algum acontecimento que deixou em minha memória uma imagem, que por sua vez me causou um desassossego e me levou a imaginar desdobramentos até chegar à semente de um romance. É assim que tudo acontece”, desvendou o mistério. Para finalizar, sentenciou: “O melhor e o pior da aventura humana passa pelos livros, por isso eles nos ajudam a viver”. “La vida sin literatura sería invivível!”
Trecho do discurso de Llosa
“Desde sempre, em todas as épocas até a nossa, houve pessoas mais cultas ou menos cultas, e as mais ou menos cultas, mas todas foram regidas por um mesmo sistema de valores, maneiras de pensar e de comportar-se. Em nosso tempo, tudo isso tem mudado. Antropólogos estabeceram que cultura é a mistura de conhecimentos, costumes, valores e tradições e que resumem tudo aquilo que um povo diz, teme ou adora. O propósito não poderia ser mais generoso, mas sabemos que o inferno está cheio de boas intenções. Todas as culturas merecem consideração. Numa angélica concepção, todas as culturas são iguais e equivalentes. Os sociólogos, por sua vez, criaram uma revolução semântica parecida, definindo a chamada ‘cultura popular’ como uma cultura menos refinada, mas ainda assim crítica e eficaz. Ela desnuda o que a cultura oficial esconde. O que distingue uma da outra é o grau de dificuldade que oferece ao público. Assim, foram desaparecendo os limites entre cultura e incultura. Hoje em dia, é como se todos fôssemos cultos. Basta abrir o jornal para ver. Agora todos somos cultos de alguma maneira mesmo que nunca tenhamos lido um livro, visitado uma exposição. Hoje todos pensam ser cultos, mesmo que ninguém realmente chegue a sê-lo.”
A sessão de autógrafos
Na fila de espera por um segundo ao lado de Mario Vargas Llosa, foi possível reconhecer algo como um perfil do seu leitor mais fiel. Composto por uma grande maioria de senhores e senhoras já com certa idade, carregando os primeiros livros publicados pelo autor - mesmo que em edições mais modernas -, o grupo ali reunido dava a impressão de acompanhá-lo por décadas, lendo em suas histórias a própria transformação. Atencioso apesar da rapidez com que diminuía a fila de autógrafos, Llosa olhou nos olhos e cumprimentou cada um dos fãs, assinando suas iniciais nos livros e despedindo-se com um humilde “gracias”, ignorando o fato de que quem deveria agradecer éramos nós.
O mundo por Vargas Llosa
Em uma sala pequena demais para o tamanho da importância do entrevistado, a coletiva de imprensa com Mario Vargas Llosa em Porto Alegre reuniu jornalistas de todo estado - além daqueles vindos de São Paulo, Argentina e até Portugal - que se acotovelaram em inevitável clima de tensão na busca pelo melhor ângulo ou a frase preciosa que não poderia ser perdida, e esquentaram (literalmente) o espaço que dividiram por cerca de 1h com o mais novo Prêmio Nobel de Literatura. Chance única para os gaúchos, a passagem do escritor peruano pela capital foi seu primeiro compromisso oficial depois da notícia do prêmio, e por isso mesmo fez da conferência no projeto Fronteiras do Pensamento um dos eventos mais importantes e disputados dos últimos anos. Rápido e objetivo na hora de responder toda a sorte de questionamentos, Llosa revelou possuir uma das cabeças mais interessantes, coerentes e informadas da atualidade, colocando-se distante do clichê de intelectual que se julga superior a assuntos mundanos, e surpreendendo pelas opiniões fortes e expostas sempre sem rodeios, com uma convicção que hoje se vê em poucos. Confira abaixo alguns dos trechos mais marcantes da entrevista.
NOBEL
Sobre a notícia do prêmio
“Esse prêmio foi uma extraordinária surpresa. Tanto que, quando recebi o aviso por telefone, pensei que poderia ser brincadeira, soube que fizeram isso a Alberto Moravia uma vez - brincadeira de mau gosto, claro, pois disseram que eram da Academia e o felicitavam pois tinha ganhado o Prêmio Nobel de Literatura. E ele cometeu a imprudência de chamar a imprensa e fazer o anúncio! Foi desastroso. Pensei que isso poderia estar acontecendo comigo, mas o homem que me deu a notícia disse que ela se confirmaria em 14 minutos – e eu esperei com ansiedade esses 14 minutos (risos)”
Sobre o que mudou
“De repente minha casa estava cheia de pessoas que eu nunca tinha visto, jornalistas nórdicos que não sei como descobriram onde moro. O ganhador se vê de tal modo acossado que perde a privacidade, a capacidade de pensar. De repente, está tomado por isso e se converte num zumbi que não atua mais por si próprio. É essa a impressão que tenho desde que soube do prêmio, parece que não sou eu mesmo, que estou interpretando um papel que não escolhi. Apesar de tudo, de maneira alguma reclamo, estou muito contente, é uma experiência para a qual eu não estava preparado. Creio que o prêmio não vai mudar minha vida no que diz respeito àquilo que escrevo. Está um pouco alterada por tudo que aconteceu, agora tenho menos possibilidade de ilhar-me, e ilhar-se é importante para poder escrever, mas isso vai passar. E sobre o prêmio em dinheiro, é preciso perguntar a Patrícia, minha mulher, pois é ela quem vai gastá-lo. Espero que me sobre algo para comprar livros (risos)”
POLÍTICA
Sobre as eleições no Brasil
“Espero que os brasileiros votem com inteligência, para que o governo que venha a seguir mantenha esse processo de desenvolvimento que tem impressionado o mundo inteiro, e que conserte também os erros que possa ter cometido até aqui.Acredito que Lula fez um bom governo, tem um prestígio internacional muito grande. Porém, não deixo de criticar algumas de suas companhias, aquelas que não condizem com suas ideias”
Sobre a América Latina
“Comparando com a América Latina do passado, há um progresso considerável. Quando eu era jovem havia muitas ditaduras militares, os governos democráticos eram a exceção. Extinguimos ditaduras, hoje o dominante é o pluralismo político, se tratam de democracias imperfeitas mas ainda assim democracias. Temos diversos problemas a serem combatidos, mas vejo que estamos no rumo certo, temos que criar igualdade, oportunidades, não estou dizendo que superamos o passado, ele está sempre presente para mim, mas vejo um grande progresso”
Sobre a experiência política
“Aprendi que não posso ser político, que careço das mais elementares virtudes que precisa ter um político. Aprendi também que a ideia que tem um escritor ou um intelectual da política é uma visão muito equivocada, a política pode ser também isso, ideias, projetos, vontade de mudanças, mas ela também é intriga, manobra, é uma atividade que, como tudo que toca o poder, tira da pessoa o melhor e também o pior, e provavelmente uma campanha eleitoral aguça tudo que é pior, os piores instintos, a intolerância, o ódio. Mas é claro que a experiência foi muito instrutiva, conheci muito de meu país, foi algo valioso”
LITERATURA
Sobre a transformação
“Seguramente, minhas ideias mudaram muito. Por exemplo, quando eu era estudante universitário, seguia as ideias de Sartre sobre a literatura comprometida, e achava que ela podia ser um instrumento de transformação da sociedade. Isso ajudou muito na minha vocação, um jovem como eu num país cheio de problemas, era muito estimulante encontrar uma maneira de interferir na vida pública e política. Mas logo ficou evidente para mim que a literatura não produz mudanças históricas imediatas, e não pode ser vista nem utilizada como arma de transformação política. Creio que a literatura atua de maneira lenta, indireta, através das consciências, da sensibildade do leitor, e também de uma maneira imprevisível, que não se pode programar”
Sobre a importância
“O que sei é que a literatura provoca na sociedade um desassossego que sempre resulta em atitudes críticas frente ao mundo, frente a todos os aspectos da realidade. E seguramente esta é a razão pela qual todos os regimes totalitários proíbem a literatura ou a censuram, porque veem na literatura um perigo, e creio que a literatura é um perigo para qualquer ditadura pois estimula questionamentos, mudanças, transgressões. A literatura é imprescindível. Sem literatura provavelmente a vida seria “invivível”. Isso pensei quando descobri a leitura e sigo pensando com a mesma convicção agora”
Cobertura do Nobel Mario Vargas Llosa em Porto Alegre
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