Nosso patrono é beat

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Marina de Campos

    Você sabe quem é Eduardo Bueno. Lembra dele da época em que apresentava o quadro É muita história! no Fantástico, ao lado de Pedro Bial. Já ouviu falar muito das importantes traduções que fez, e sabe que há mais ou menos uma década ficou famoso por revolucionar a história ensinada em sala de aula com livros atrativos e inovadores. Mas aqui você vai saber também do amor incondicional do nosso patrono de 24ª Feira do Livro por Bob Dylan, a estreita relação com a figura de Jack Kerouac depois de abrir as portas do Brasil para a literatura beat e a sua cômica impressão sobre a Capital Nacional da Literatura. Confira a entrevista.

Segundo – Peninha, a história é mesmo contada pelos vencedores?
Eduardo Bueno -
Em geral, sim. E assim foi durante séculos. Porém, dentre as inúmeras transformações pelas quais a investigação historiográfica passou ao longo dos últimos 50 anos, uma das novas tendências - a chamada "history from bellow" ou "a história vista de baixo" - entrou em cena com o propósito de dar voz aos que quase nunca a haviam tido. Foi, sem dúvida, uma atitude louvável, digna e, acima de tudo, inovadora. No entanto, quando mal entendida e mal aplicada, essa escola também deu margem à interpretações e a livros lacrimosos, piegas e/ou "vingativos". Não creio que a história possa ser contada tendo por princípio a divisão da humanidade entre os "bons" e os "maus". Eu, particularmente, acho mais produtivo desconfiar dos dois.

Segundo - O que você pensa da visão do meio acadêmico de história em relação a essa abordagem diferente que você popularizou? Será que o fato de ser jornalista e não um historiador formado os incomoda? Isso te atrapalhou em algum momento?
EB -
Olha, na verdade julgo que essa é uma polêmica um tanto vazia e já suplantada. Os historiadores dos quais realmente gosto e respeito - Mary del Priori, Nicolau Svecenko, Lilia Schwarcz, Evaldo Cabral de Melo e outros - entenderam o significado e o propósito da minha obra, que é basicamente de divulgação e cujo interesse maior é despertar o amor pela história. Agora, como disse Tom Jobim, sendo o sucesso no Brasil uma forma de "ofensa pessoal", é claro que meus livros despertaram, em certas mentes menos arejadas, o que se poderia definir como sendo o feio sentimento da inveja... Creio que minha obra, bem como a de outros jornalistas que escrevem sobre história, foi uma inovação positiva e a maior parte do público leitor, bem como uma porção mais atenta e sadia da academia, entenderam de imediato o significado dela. No fundo, ela é uma porta de entrada para que o leitor se interesse pela obra feita por historiadores de ofício. O Brasil possui vários, escrevendo muito e cada vez melhor. Também graças ao que fiz, eles estão sendo cada vez mais lidos.

Segundo - Você costuma dizer que, depois que ouviu Bob Dylan pela primeira vez, sua vida mudou. O que foi exatamente que você sentiu?
EB -
A vontade de me libertar das imposições abusivas da sociedade, do colégio, da família, da igreja. O ímpeto de confrontar a hipocrisia, os preconceitos, a caretice. O desejo de me expressar poeticamente e fazer do poder das palavras uma arma fulgurante de contestação e mudança. O sonho de vincular minha vida e minha mente a uma estirpe de poetas malditos, como Rimbaud, Baudelaire, Verlaine, Poe, Whitman. A certeza de que meus horizontes poderiam ser mais amplos do que os do mundo medíocre onde nasci.

Segundo - Ele é um bom exemplo de como a música pode contar a história de uma geração, certo? Como você relaciona a história com a música?
EB -
A música sempre foi instrumento de libertação, e ajudou a humanidade a alçar-se a um plano muito superior ao mundo rasteiro onde passamos a maior parte de nossas vidas. No caso da música pop - na qual Bob Dylan se insere -, nunca antes na história a trilha sonora de uma geração havia deflagrado um movimento cultural e social de tamanho impacto quanto aquele que, capitaneado por beats, hippies e outros "rebeldes", ajudou a transformar o mundo num lugar muito melhor do que era até o final dos anos 1950. Não sou daqueles saudosistas dos anos 60, mas que essa década teve um toque único de magia, isso é inegável. Bob Dylan, entretanto, está longe de ser uma relíquia: está vivo, ativo, presente, firme e forte, tão instigante quanto sempre foi mas, talvez, mais feliz do que nunca, agora que está a seis meses de completar.... 70 anos!

Segundo – Você é considerado descobridor e embaixador de Jack Kerouac no Brasil. Traduzir suas obras te fez se sentir próximo a ponto de realmente compreender o ser complexo que ele foi? Pode fazer em poucas linhas um retrato do espírito de Kerouac?
EB -
Kerouac se auto-definiu como "um católico louco e místico". E de fato era - embora tenha sido muito mais do que isso também. Foi um escritor apaixonado e apaixonante que se entregou inteiramente ao projeto de tornar a literatura norte-americana mais genuína e menos tributária da literatura européia. Foi o cara que, um século depois de Walt Whitman, escutou outra vez o chamado da estrada aberta. E se pôs a percorrê-la - levando consigo milhões de leitores, numa viagem que se deu - e ainda se dá - em vários planos, não apenas físicos. Fui um dos que embarcou nessa jornada e tenho um imenso orgulho de, ao traduzir o livro, ter propiciado que tantos brasileiros pudessem seguir essa mesma trilha, luminosa e libertária.

Segundo - Como foi a experiência de, tantos anos depois, mergulhar novamente em On the road para a publicação do manuscrito original?
EB -
Um tormento, um sacrifício, um sofrimento indizível. Com direito à plena redenção no final, é claro. Foi ajudado no percurso dessa nova tradução por minha ex-mulher, Lúcia Brito, que depois teve que se internar num hospital psiquiátrico... Brincadeira. Se ela por acaso tivesse mesmo se internado, é bem mais provável que fosse por minha causa, não por causa do pobre Jack....

Segundo - O que está achando da experiência de ser patrono da Feira do Livro de Passo Fundo?
EB
- Estou adorando, até porque nunca se dignaram a me convidar para a famosa Jornada Literária. E agora é tarde, aproveito para dizer.... Sempre gostei de Passo Fundo – de sua rudeza franca, de seu ímpeto, de seu orgulho quase arrogante. Além do mais, é a terra do meu ídolo e (quase) amigo Felipão, o maior treinador do mundo... E, é claro, o lar do Gaúcho de Passo Fundo, um time que pude assistir jogando, com eficiência e a devida ferocidade, no saudoso estádio Wolmar Salton, com Bebeto, o “canhão da serra”, como centroavante e o finíssimo Daison Pontes na zaga... Ando muitíssimo atarefado e ir aí vai me exigir um esforço extra, mas estou bem feliz.

O que é beat

    A geração beat foi um grupo de escritores norte-americanos que surgiu na década de 1950 e abalou para sempre a história da cultura pop. Conhecedores de toda uma corrente de rebelião e inconformismo que percorre a história das artes e do pensamento ocidental, os beatniks eram marginais que circulavam pelo submundo e romperam os limites entre a vida e a arte ao levarem suas próprias experiências cotidianas para as páginas. Hoje, são reconhecidos como precursores dos roqueiros e fundadores da contracultura. Alguns dos nomes mais famosos são William Burroughs, Allen Ginsberg e o próprio Kerouac. Entre os artistas que herdaram sua essência, Bob Dylan e o próprio Peninha, que pela primeira vez traduziu para o português uma obra beat.

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