Apesar de mais conhecida pela participação no programa de televisão Saia Justa, Márcia Tiburi é escritora, artista plástica e respeitada doutora em Filosofia. Representando uma maneira mais aberta e acessível de falar do assunto, ela esteve em Passo Fundo para as atividades promovidas pelo IFIBE em função do Dia Mundial da Filosofia
Marina de Campos
Os redondos 40 anos de Márcia Tiburi escondem-se por trás de uma aparência leve, o estilo contemporâneo adepto do detalhista e a favor do confortável, o ritmo tranquilo da voz marcada por uma bela mistura de sotaques que se revezam dependendo do pensamento que a cabeça visivelmente arrojada e muito arejada quer exprimir. Com uma figura que se encaixa perfeitamente a uma apresentadora de TV, mas a qual nada impede que seja de uma professora doutora autora de dezenas de livros sobre filosofia, alguns mergulhos na literatura e também artista plástica nas horas vagas, ela transita livremente entre os mais diversos meios, exatamente como imagina que a filosofia deveria fazer.
Convidada especial das comemorações do Dia Mundial da Filosofia promovidas pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier em Passo Fundo, a filósofa realizou nesta quinta-feira a conferência A filosofia frente os desafios da contemporaneidade, no Teatro do Sesc, seguida pela apresentação do espetáculo Contos para enganar a morte pelo grupo Timbre de Galo. Em entrevista coletiva, a autora de ensaios como As mulheres e a Filosofia e Metamorfoses do Conceito, e dos romances Magnólia, A mulher de costas e O manto, falou um pouco sobre tudo. Confira.
Vida missionária
“Viajo o país dando aulas, palestras, como vim fazer aqui. Mas é engraçado que nunca fui atrás disso, foi apenas acontecendo. A vida acadêmica, a filosofia enquanto trabalho acadêmico, é muito restrita, é bacana e a gente fica muito feliz com isso, mas é um trabalho que quase toca o egoísmo, aquela felicidade egoísta. Aí comecei a conversar com as pessoas de um jeito muito natural, mais pela demanda do mundo do que por algo que eu estivesse buscando. As pessoas é que começaram a se interessar por filosofia, e por acaso eu estava por aí disposta a isso.”
A experiência do pensamento
“A ideia do evento é continuar esse processo de desmistificação da filosofia acadêmica, esse desejo de que aquilo que a gente chama de filosofia se torne uma experiência possível para as pessoas, porque afinal de contas não é nada mais do que uma experiência de pensamento, algo que qualquer um pode fazer, algo próprio da condição humana. A conversa é nesse sentido, conversar sobre o que foi a filosofia, o que tem sido a filosofia, e o que significa fazer essa experiência na atualidade. Filosofia é algo que está no nosso cotidiano, a gente está sempre chegando perto dela, às vezes promovendo-a, às vezes aniquilando-a, porque no fundo a filosofia é mesmo um cuidado, uma superatenção que a gente tem com a nossa própria experiência de pensamento. E nós, que somos professores, somos especialistas nisso, em prestar atenção nas estruturas do pensamento e como elas têm conexão com a ação das pessoas e com o modo como a vida vai acontecendo.”
Filosofia para a dona de casa, o bancário, o caminhoneiro...
“Apesar de ouvir muito falar naquela história de que as pessoas não gostam ou não se interessam por filosofia, posso dizer que vivo uma experiência contrária. Talvez por transitar tanto entre pessoas que se interessam por isso, quase nunca encontro alguém que não gosta de filosofia. Quem sabe eu devesse pesquisar um pouco sobre isso, pois fico até espantada com a demanda e a receptividade que existe na sociedade em relação à filosofia. Acho incrível que as pessoas que eu veja mais interessadas em filosofia sejam aquelas que estão fora da vida acadêmica, que trabalham em empresas, em meios aparentemente distantes disso. Dos médicos aos empresários, já falei com cada pessoa... É surpreendente, existe uma procura imensa pelo que a gente chama de cafés filosóficos, e gente que é dona de casa, lojista, essas pessoas vão se juntando nesses lugares e querendo saber dos nossos assuntos – aqueles que, na verdade, são os assuntos de todo mundo.”
Contra o senso comum
“A diferença que existe entre filosofia e os pensamentos básicos que a gente chama de senso comum é essa: o filósofo, alguém que está acostumado a trabalhar com o argumento e a estrutura da linguagem, ele tem agir de modo cuidadoso em relação ao objeto, coisa que no senso comum não existe, todo mundo pensa igual e pronto, como se o pensamento fosse objetivo, estivesse dado, como se existisse um jeito óbvio de se olhar para as coisas. Então, quando a gente faz filosofia, que estudou na escola, na faculdade, acaba ficando mais atento. Acho, inclusive, que essa lei do ensino de filosofia contribui muito para o interesse das pessoas, e o bacana dessa lei é que ela não obriga, e sim alerta.”
A ditadura e o fim dos caciques
“É interessante essa negação política que se construiu em torno da filosofia. A gente teve uma negação estatal, um processo político que deriva da ditadura, pois a ditadura foi o fim da filosofia no Brasil. E é interessante perceber como sobreviveu a filosofia no país apesar disso, e o que a gente está fazendo com ela hoje. Agora é um momento super privilegiado, para além dessa questão da lei, com o fim da ditadura e uma abertura cada vez maior em vários meios, o próprio interesse dos meios de comunicação na filosofia foram muito bons para ampliar esses horizontes. Acabou aquilo dos caciques da filosofia, a dominação das ideias por grandes nomes das universidades federais - hoje em dia a filosofia é nossa.”
A literatura conta, a filosofia conversa
“Depois que você escreve literatura, claro que você escreve melhor filosofia. Percebo que a grande diferença estre uma coisa e outra é o seguinte: a literatura te permite ser totalmente egoísta, pois ela é voltada para a expressão. Enquanto que a filosofia é voltada, principalmente, para a comunicação. Com a filosofia você quer conversar com as pessoas, você quer encontro, com a literatura não necessariamente. Ela pode levar você para um eremitismo, mas a filosofia leva sempre para a comunidade, para o estar junto com os outros. Quando vou para feiras de livro em função da minha literatura, gosto muito de contar dos meus livros, falar sobre eles, mas na filosofia a gente não está só a fim de contar sobre o que escreveu, a gente quer resolver um problema, inventar uma dúvia, enfrentar um caminho, um pensamento, os dilemas do cotidiano, aqueles problemas que todos têm em comum. Posso dizer que filosofia é a coisa mais interessante que há, e literatura é a coisa mais divertida que há.”