Por que o circo sobrevive

Com todo tipo de tecnologia à disposição hoje em dia, como o circo ainda existe? Aproveitando a presença do Circo Bremer em Passo Fundo, o Segundo foi assistir a uma noite de espetáculo na tentativa de encontrar algumas respostas para essa pergunta

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Porque o circo é uma eterna criança

    Maurício Gabriel tem 10 anos e uma vida de diversão totalmente concentrada em seu videogame. Ele pensa que isso basta. Mas ao entrar na escuridão da lona sem poder imaginar o que o espera, deixa escapar: “Nossa, eu tô ansioso”. Tem na mente o que é um circo somente graças à reprise de uma antiga novela de televisão. “Olha, parece Ana Raio e Zé Trovão”. Depois de cansar de rir com os palhaços, adivinhar todos os truques e distrair-se com os brinquedos vendidos no intervalo do espetáculo, assiste com certo receio ao temido Globo da Morte sendo colocado bem no centro do picadeiro. “Agora não quero nem ver o que vai acontecer”, diz com voz realmente angustiada depois de saber que quatro motoqueiros vão entrar lá e correr todos os riscos possíveis apenas para sua diversão. Em pouco menos de duas horas, a realidade perdeu completamente as suas dimensões. O céu tem estrelas gigantes e listras coloridas. Os socos e as explosões falsas têm som de “pow!” bem como nos gibis. As mulheres são cortadas ao meio e continuam sorrindo. Os palhaços choram jatos de mentira mas nada pode ser mais verdadeiro do que isso. E o videogame? O videogame não mais existe.
    
Porque há coisas que a tecnologia não supera
    O asfalto dá lugar à calçada, se transforma em chão de brita, vira metal na pequena escadaria do trailer rosa que serve de pórtico para finalmente se converter em ilustre tapete vermelho. A mudança sob os pés mais parece o roteiro de uma transição mágica entre o mundo real e essa fenda no tempo e no espaço que é o circo. Nos olhos de um adulto, pode ser que tenha algo de sinistro ou até mesmo de melancólico, o que não deixa de ser parte de sua beleza. Mas nos olhos de uma criança, é alegre e glamouroso e irreal como nenhum filme, jogo ou desenho animado é capaz de ser. Afinal, com toda a evolução tecnológica, com todas as invenções fantásticas que nos jogam para dentro de uma tela e fingem fazer com que a gente se divirta, nada, nada pode substituir essa alegria ingênua que coloca adultos e crianças a rirem sem pudor e assustarem-se em pleno escuro com aquele medo quase bobo que um número aéreo nos injeta direto na veia. O circo é o espetáculo que produz a ilusão mais sincera de todas, pois engana deixando claro que tudo não passa de mera fantasia. Se não fosse isso, o que explicaria a sua persistência em um milênio dominado por um real brutamente artificial?

Porque ele nasceu há 10 mil anos atrás
    Imagine ferozes corridas de carruagens, com seus cavalos emplumados e as rodas tão brilhantes quanto traiçoeiras, os corajosos domadores entre tigres e leões selvagens, as sangrentas lutas de gladiadores e os assustadores engolidores de fogo a observar desafiadores os membros da plateia. Esses eram os números do Circus Maximus, primeiro a se tornar famoso durante a Império Romano – período em que o circo aproximou-se mais da forma como o conhecemos hoje. Dos chineses aos gregos, dos egípcios aos indianos, quase todas as civilizações da história praticavam algum tipo de arte circense. Com o início da era medieval, artistas populares passaram a improvisar seus números em feiras, praças e entradas de igrejas, fazendo nascer assim as famílias de saltimbancos que viajavam de cidade em cidade apresentando atos cômicos, malabarismo, dança e teatro. Mas foi em 1768, em Londres, que o cavaleiro Philip Astley inaugurou o Anfiteatro Real das Artes, com seu picadeiro circular a a reunião de atrações que compõem um espetáculo de circo ainda hoje. Sobrevivendo a batalhas e revoluções, reiventando-se em outras mídias como acontece com o chamado novo-circo exercido por grupos como o Cirque du Soleil, e perpetuando-se por gerações que acreditam em sua essência transformadora, não é insano dizer que o circo vai, sim, atravessar mais quantos mil anos for preciso.

Porque é uma bela tradição familiar
    Há quase um mês acampada no parque da Gare, em Passo Fundo, a família Bremer é a prova de que o circo está vivo. Com uma trupe composta por 40 pessoas e uma dezena de trailers que lhes servem de lar, encontra-se em sua quarta geração de artistas que receberam de herança a dádiva do circo, num ciclo que parece não ter data para se encerrar. “O mundo pode até mudar, mas o circo continua. A tecnologia não atrapalha, pelo contrário, só nos ajuda”, sentencia Edmar Bremer, mestre de cerimônias do Circo Bremer, afirmando que a internet acabou se tornando uma grande aliada. Lembrando que a base dessa arte é mesmo a família, ele apresenta a filha Eloise, dançarina e estrela de vários números. “Somos de São Paulo, temos artistas do Uruguai, do Chile, mas a maioria é mesmo da família. Eu comecei muito nova, com 4 anos, e fui aprendendo diversas práticas. Hoje estou ensinando minha irmã mais nova”, explica ela. Sem rumo certo, eles viajam pelo país insistindo em viver de uma arte imortal, pois como diz o ditado, “o show tem que continuar”.

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