Nasce um espetáculo

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Ao logo dessa semana, o grupo Timbre de Galo recebeu o diretor carioca Júlio Adrião e deu vida àquilo que será seu mais novo espetáculo: O Casamento de Hermelinda. Ensaiando nos fundos de uma igreja, escreveram o texto, levantaram as cenas e começaram a produção de cenário e figurinos, numa maratona que apenas verdadeiros amantes do teatro aceitariam encarar

Marina de Campos

    Sexta-feira quente, exatamente às 15h05. O atraso já se acusa, o endereço é simples mas nem tanto, principalmente se o melhor caminho estiver interditado por obras ou seja lá o quê. A torre da minúscula igreja ajuda na localização, o portão da frente está apenas encostado – claro, igreja é sempre a casa de todos, basta entrar. A grande porta de madeira escura se encontra fechada, mas uma gritaria que não se costuma ouvir numa igreja (ou talvez sim) aponta que o caminho é pelo lado, em direção aos fundos. O barulho aumenta, parece ser uma briga violentíssima, vários falam ao mesmo tempo, algo de estranho está acontecendo. Mentira: são só artistas trabalhando.

    O penúltimo ensaio de uma longa semana de atividades para o grupo Timbre de Galo e o diretor carioca Júlio Adrião foi de muitas decisões. Com um prazo apertado apesar da criação em tempo recorde, eles deram à luz um espetáculo partindo do nada, como quem ergue um castelo da noite para o dia. “A experiência de viver essa semana foi incrível, estamos fazendo milagres, pois geralmente usamos cerca de três meses para todo o processo de montagem, e partindo de um texto já pronto”, explica o ator Carlinhos Tabajara, escondendo o cansaço com brincadeiras incessantes e uma vitalidade mais que necessária nesse momento.

Em construção
    Juntos para a criação de uma peça à convite do projeto nacional Por que a gente é assim?, eles têm ensaiado no salão de uma igreja escondida nos fundos do Cecy cerca de dez horas por dia, desde que Adrião chegou. “Esse projeto vem de um outro projeto, Por que a gente é assim?, iniciativa da produtora de cinema carioca Matizar que tem uma de suas facetas voltada ao teatro de rua, no qual eu atuo na concepção”, explica o diretor. “Essa concepção previa o convite a três grupos do Brasil para que eles desenvolvessem seus trabalhos da forma que normalmente trabalham, em cima dos temas fé, sexo, autoridade, consumo, preconceito e educação, resultando num programa de televisão no canal Futura, que vai ao ar em abril, com curta-metragens dirigidos por realizadores do país inteiro”. Além do Timbre de Galo, participam o grupo Bagaceira, de Fortaleza, e o Artetude, de Brasília.

    Apesar de acostumados com surpresas, dificuldades e desafios, o grupo teve que se virar para fazer O Casamento de Hermelinda se tornar realidade. A peça, diferente do que aconteceu em outros trabalhos, foi escrita por eles em parceria com Adrião. “Por conta de uma velha admiração mútua, resolvemos nos unir nisso. Apresentei a eles a proposta, e eles compraram a ideia desde que eu fizesse a direção”, lembra. “Em janeiro o Carlinhos chamou a responsabilidade para escrever a dramaturgia e, com a colaboração de todos, levantou uma possível história, desenvolvendo um primeiro texto durante uma semana. Pouco antes da minha vinda eles me mandaram o texto, e todos nós concordamos em trabalhar mais em cima disso”, completa. Isso resultou em dois dias inteiros de trabalho somente em cima do papel, reescrevendo tudo.

O quartel general de uma trupe

    Ensaiando em ritmo frenético (coisa que o diretor emprega também na velocidade da fala e dos gestos), como que tentando acompanhar a rapidez dos próprios pensamentos, o grupo fez do espaço o seu quartel general. Ali está montado o palco circular no qual representam as cenas e do qual descem e sobem incansavelmente, um ateliê improvisado onde se encontra toda sorte de materiais utilizados na criação de cenários e figurinos, e ainda uma mesa enorme e bagunçada por dezenas de papéis, rabiscos, garrafas, chaves, tesouras, estojos... “É muito intenso. Estamos trabalhando em sala cerca de 10h por dia, sem contar que todo mundo vai pra casa pensando nisso, não desliga nunca. É uma cachaça mesmo”, acrescenta Adrião.

    “Essa talvez tenha sido a primeira noite que dormimos mais tranquilos pois ontem fizemos um bom ensaio e sentimos que tocamos a forma, entendemos o que estamos fazendo”. Ele explica.  “Porque é tudo muito incerto, você vê um palco como esse, ainda desnudado, é difícil visualizar, temos que ter certeza que está todo mundo pensando a mesma coisa, e fazer com que as ideias continuem fluindo”. Apesar de importante, a estreia que acontece em Passo Fundo em abril é só uma parte do processo. “Eles ainda serão filmados, já que a meta é que eles sejam parcialmente introduzidos nesses programas de TV. Como o teatro se trata de uma arte efêmera que se conclui ali na hora em que se conclui aquele momento, a meta do projeto é ter os trabalhos filmados para que eles possam ter isso registrado. Além disso, o espetáculo vai nascer e permanecer no repertório do grupo”, lembra o diretor, que vai embora neste domingo e retorna apenas no dia 11.

    “Agora é com eles. Ensaiar todos os dias, pelo menos duas horas, e ir tocando o resto. Todos os dias, ouviram!”, brinca ele, tendo como resposta dos já liquidados atores alguns olhares implorando por piedade. Apesar da exaustiva maratona para o projeto Por que a gente é assim?, a atmosfera de prazer e diversão deixa claro: vai dar tudo certo, pois é exatamente disso que eles mais gostam – e porque eles são assim. A estreia d'O Casamento de Hermelinda ainda não tem local confirmado, mas acontece em Passo Fundo no final de abril.

Diário da semana

O diretor Júlio Adrião conta como foi a semana de trabalho em Passo Fundo, ao lado do grupo Timbre de Galo

Sexta-feira, 21 – Cheguei faz uma semana. Fizemos a primeira leitura nesse dia mesmo.
Sábado, 22 – Fizemos o primeiro ensaio, e terminamos as atividades concluindo que o Carlinhos e eu tínhamos que reescrever o texto pois eram tantas questões em aberto que valia mais a pena aproveitar uma essência inicial do texto e partir para o desenvolvimento que a gente tinha apontado.
Domingo e segunda-feira, 23 e 24 – Passamos dois dias enfurnados escrevendo todo o texto de novo.
Terça, 25 – Fizemos novamente a primeira leitura, agora do novo texto, e começamos a levantar as primeiras cenas.
Quarta e quinta, 26 e 27 – Ensaios e mais ensaios. Continuamos fazendo esse levantamento de cenas no palco.
Sexta-feira, 28 - Falamos sobre o final, que é bastante complexo. Somos todos atores, estamos acostumados a criar o desenvolvimento da cena no próprio ensaio, damos um retorno para esse texto original acrescentando e dando mais coerência a essa dramaturgia. Chegamos a um primeiro esboço final de como  vai ser o espetáculo. Ainda temos o sábado. No domingo eu viajo de volta.

O Casamento de Hermelinda, por Carlinhos Tabajara

    “O Casamento de Hermelinda se passa em São Tibério do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, e acontece em qualquer época. É uma história que envolve várias pessoas da cidade, alguns nomes como o estancieiro coronel Edélcio, tem o prefeito, o comissário de polícia, o bispo e o seu sacristão Osiris, tem o noivo que chega de Paris, prometido para a filha do coronel, os peões Timorato (apaixonado pela filha do coronel Edélcio) e Amâncio (que representa uma força política latente, é um revoltado com as condições de trabalho, um verdadeiro sindicalista). Aí tem os bandidos, os ladrões, tem o grande bandido da região, Pedro, O Louco, que é um tipo meio afetado, meio psicopata, que está pra chegar na cidade bem no dia do casamento. É uma típica farsa, a gente teve a ousadia de dizer que se inspirou na commedia del'arte e nessas farsas tipicamente brasileiras, como fazem Ariano Suassuna e outros grandes dramaturgos.”

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