Lua na sarjeta

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É sentado bem no meio dos paralelepípedos da rua que de repente você entende: eles sabem mesmo fazer isso. E não fazem apenas para os apaixonados por teatro, mas também para as vizinhas que vão se chegando com suas cadeiras de praia e o chimarrão a tira-colo, o casal de idade que foi dar uma volta na quadra e gostou da movimentação, ou até para aquele mendigo gritão que, cercado de cães pouco simpáticos, fica em volta do palco parecendo querer fazer também o seu show.  Porque o teatro de rua, caso você ainda não saiba, jamais faz qualquer distinção. Coloca o cachorro pra dentro da cena, desce do palco para atuar em meio às cadeiras, contracena seriamente com uma criança de olhos assustados que não sabe se ri ou se chora. O teatro de rua, em outra definição impecável, é aquilo que faz o grupo Timbre de Galo.

Marina de Campos

Seria noite de “teatro lotado” não fosse em plena rua. Seria “de iluminação complexa e totalmente acertada”, não fosse os dois refletores solitários, um em cada lado do palco, como guardiões responsáveis por não deixar a escuridão tomar lugar. Seria de “figurinos luxuosos” não fosse o traço artesanal de cada vestido, chapéu, bigode ou simples trapo delicadamente confeccionado nos fundos de uma igreja emprestada. Seria um daqueles espetáculos elegantemente caros, em que as primeiras filas da plateia são ocupadas pela elite da elite – não fosse exatamente o contrário.

Nu e marginal

    Formado por atores que fazem teatro de rua a vida inteira, o Timbre de Galo vai provando a cada nova apresentação que não foi obrigado a esse teatro de custos reduzidos e simpatia imediata do público, mas sim destinado a ele. Uma escolha transformada em missão depois de tanta receptividade. Sem desmerecer o teatro convencional, o grupo faz enxergar a riqueza do teatro marginal que se alimenta do riso das calçadas e converte simplicidade em verdadeira mágica. Despidos de grandes artifícios, garantem-se na base do talento e colocam em prática aquilo que muito se fala e pouco se vê: a tal democratização da cultura.

Viva a democracia

    E foi um perfeito exercício de democracia a noite de quarta-feira, quando centenas de pessoas sentaram em cadeiras de plástico enfileiradas no meio da rua de pedra em frente à Imed e assistiram à nova peça do grupo, intitulada O casamento de Hermelinda. No melhor estilo farsa, a trama explora caricatos personagens da minúscula cidade fictícia de São Tibério do Sul. Por mais caricatas que sejam, figuras como o peão Timorato, o coronel Edélcio e o sacristão Osiris soam incrivelmente verossímeis, aquele tipo de pessoa com quem você já esbarrou algum dia.

O segredo dos seus olhos

    Esse é, provavelmente, o segredo por trás do sucesso do grupo. Inspirando-se em seu próprio público, aquele que não tem classe definida, varia de sotaque, se veste como acha que deve e ri despreocupado de seus próprios trejeitos quando os vê incorporados em um ator, o Timbre de Galo conquista facilmente o carinho e a admiração de sua plateia. Ao avançar mais alguns passos se permitindo uma gama de personagens maior que a quantidade de integrantes, aposta alto. E acerta. Difícil lembrar, quando a peça já vai a meio, que alguns dos atores estão interpretando dois personagens, trocando de roupa freneticamente nos fundos do palco e retornando como se nada tivesse acontecido. Com todo respeito aos atores de carne e osso, um dos melhores momentos se dá com a entrada de um imenso boneco – mas com palavras isso não há de se explicar.

Lua de mel

    Se quarta-feira foi dia de casamento, hoje Passo Fundo vive sua lua de mel. Com mais uma excelente peça de teatro para o currículo, a cidade assiste à ascensão do grupo e o alcance de um patamar que os coloca junto com os demais grandes grupos de teatro de rua do país. Aliás: não é por nada que o Timbre de Galo foi selecionado para participar do projeto nacional Por que a gente é assim?, da Matizar Produtora. Em seu melhor momento desde a criação, em 2009, o grupo faz como no clássico da literatura noir de David Goodis e comemora do seu jeito: com a lua na sarjeta.

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