Marina de Campos
É na mesma rua escura por onde desfilam prostitutas e viciados que se encontra a galeria de arte mais insólita de Passo Fundo. Antro, reduto, submundo. Uma das mais perigosas do centro da cidade. Cravejada de feridas dos que recorrem a ela como última opção, é observada com receio pelos rostos emoldurados nas janelas dos ônibus que chegam e partem da rodoviária sem conseguir enxergar direito o que dizem seus muros sufocados. O contraste das cores dos desenhos em meio ao cinza do concreto - e da calçada, dos prédios, do asfalto, das roupas, da pele, dos ossos... - é tanto que não deixa ver. A essa altura, as figuras estrategicamente tatuadas nessas paredes sem dono acabam se transformando na única e mais legítima forma de arte para quem sabe que na vida tem que haver algo além de dor.
Tendo como público fiel toda sorte de gente que passa pela rua Ângelo Preto para ir trabalhar ou fazer o que quer que seja, um artista sem nome registra seu talento através do graffiti. Agora tem nome: Iuri, 22 anos, responsável e culpado pelas pinturas que são ignoradas por alguns, apreciadas por outros e condenadas por quem ainda não consegue separar a arte do estigma da pichação. Desenhista desde criança, quando fazia competição com os colegas nos cadernos da escola, ele já teve a camiseta rasgada e o corpo jogado em um camburão por conta dos desenhos elaborados na calada da noite, em lugares abandonados da cidade. “A polícia é uma de dia e outra de noite. Os que elogiam à tarde são também os que xingam e rotulam de vândalo durante a noite”. Sem questionar a função de evitar pichações, ele se pergunta até quando sua arte vai ser pré-julgada e confundida pela polícia e por parte da sociedade que parece não compreender. Aos que se perguntarem, o caso chegou até o fórum, mas o processo foi arquivado... por falta de acusação.
Nascido e criado na Vila Luiza, sempre se identificou mais com o hip hop do que com as pinturas caras dos museus. Bem antes da polícia, quem primeiro lhe recriminou foi a mãe, que uma noite o viu chegar em casa tentando esconder as latas de spray e de imediato o repreendeu. “Eu sei o que tu estava fazendo, guri”. Como todo e qualquer dom que não se escolhe e também não pode ser evitado, Iuri desobedeceu a mãe e continuou fazendo graffiti. Logo os muros da casa e as paredes do próprio quarto estavam tomadas. Com o irmão mais novo como fiel companheiro, foi aprendendo a lidar com as tintas, sentindo a textura dos muros, adequando o desenho a cada lugar. O tempo passou e, num Dia das Mães, a homenagem foi uma radiante parede pintada. Ela cedeu, finalmente.
Sem qualquer tipo de apoio ou patrocínio, ele trabalha o dia todo em um escritório fazendo contas e requisições. “Assim que tiver dinheiro, quero fazer faculdade de publicidade”. Enquanto isso não acontece, gasta o que sobra do salário nas latas de spray que custam dez reais quando são das mais comuns. Talvez, se fossem mais baratas e não necessitasse de tantas cores para chegar aos desenhos que faz, Iuri já teria coberto a cidade inteira com seus homens e animais alucinados, peixes linguarudos, macacos-polvo, coelhos raivosos, seres com membros de cogumelo, ovelhas ingênuas, demônios politizados, rappers coroados e grafiteiros insistentes. “Pois hip hop é sinônimo de resistência, entende”, diz Fanho, seu amigo b-boy.
É verdade. Se a arte tradicional já é um meio difícil, a arte marginal em que se encontra localizado o graffiti é um constante exercício de luta e subversão. Sem recursos, sem apoio, sem aprovação, sem tinta a óleo, sem tela pra pintar, o que resta é a rua, as latas e os olhos sempre atentos, pois a qualquer momento alguém pode aparecer pra reclamar. O que “resta”, na verdade, não é bem a expressão. O graffiti é o meio escolhido por Iuri para se expressar. A imagem crua, os contornos fortes, as cores exageradas, a liberdade gritante que se gruda à tinta e transforma uma rua cheia de medos e tristezas em um museu a céu aberto. As obras-primas de Iuri não têm preço. Ao longo desses anos algumas casas velhas e muros cambaleantes foram derrubados levando embora seus melhores desenhos. Em vez de lamentar, seu amigo Luan diz sabiamente: “É uma pena não estar mais lá, mas pense em quantas pessoas vão passar por ali e lembrar que naquele lugar já houve um grande desenho”. A arte das ruas, calejada, cruel e corajosa, sempre sobrevive.
Junto com Iuri Ortiz, fazem os graffitis a Tagville Crew, formada por Iuri, Bigue, Gueto, Tiago, Code, Guégo, Guede, Bernardo e Nunu, e outros colaboradores como Muze, Mari e Insone Iuri.