Um dia na vida

Vencedor do prêmio Açorianos de Teatro, Dia Desmanchado traz drama sobre o tempo ao Teatro do Sesc, neste sábado

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Marina de Campos

    Mas falar sobre o tempo é falar sobre o indizível. Por isso, melhor nos atermos em dançá-lo, em agir sendo levado por ele, para  corrompê-lo, implodi-lo, imaginá-lo e talvez liberá-lo. Associar o discurso do tempo ao movimento do ator foi encaixar o pé no sapato e deixar que o passo determinasse o caminho, não evocando uma direção única, mas sim flutuando nessa órbita tão familiar a nós, pessoas de teatro: a efemeridade do instante.
    Em um parágrafo, Tatiana Cardoso diz muito sobre Dia Desmanchado, do grupo Teatro Torto. Diretora da peça que venceu o disputado prêmio Açorianos de Teatro nas categorias de melhor ator para Marcelo Bulgarelli e trilha sonora para Jackson Zambelli
e Sérgio Olivé, ela recria uma história que beira o nonsense para questionar o tempo. Com livre inspiração na obra O ensaio, do dramaturgo americano Benjamin Bradford, a peça mostra “um dia na vida de um homem que ensaia em sua casa o encontro com uma mulher”.
    Esse homem, apesar de perdido em banalidades, tem profissão das mais curiosas. Exterminador de insetos, vê-se acuado como as moscas e baratas que apavora todos dias com a chegada de uma carta feminina, algo como a promessa imaginária de um encontro. De forma quase torturante, ele se obriga a ensaiar suas ações na tentativa de que nada fuja do controle. Enquanto isso, quem foge é o tempo, que se disfarça ora de pressa, ora de espera, ora de angústia sufocante, e assim o dia vai se desmanchando.
    Para Rodrigo Monteiro, crítico teatral e jurado dos troféus Braskem e Açorianos, a direção de arte de Dia Desmanchado é o seu grande trunfo. “Além da atuação de Bulgarelli, nada menos que excelente, as cores e as texturas dispersas no cenário e nos figurinos fazem lembrar algo de imaginário, que não é desse mundo, mas conversa com ele e está nele, é imanente a ele”. Outro ponto importante é a música. “A trilha sonora remete a uma melancolia de um tempo não vivido, mas sonhado, e sonho e idealização não são a mesma coisa: aqui nem tudo são flores”.
    Mais recente trabalho do Teatro Torto, a peça é uma das várias do grupo contempladas com o prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2009. Espetáculo integrante do projeto Rio Grande no Palco, promovido pelo Sesc do estado, Dia Desmanchado circula pelo interior passando por Passo Fundo neste sábado, para depois seguir viagem por Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Montenegro,  São Leopoldo e Gravataí.

Mais informações no blog
diadesmanchado.blogspot.com

Dia Desmanchado,
do Teatro Torto, RS
Direção de Tatiana Cardoso
Atuação de Marcelo Bulgarelli
Trilha sonora original: Jackson Zambelli
e Sérgio Olivé
Bandoneón: Mano Monteiro
Duração: 55 minutos
Classificação etária: livre
Sábado, 19 de março,
no Teatro do Sesc, às 20h

 

ENTREVISTA

 

Segundo - Dia Desmanchado foi construído com base no conceito de biomecânica teatral desenvolvido pelo russo Vsevolod Meyerhold. Do que se trata isso?

Marcelo Bulgarelli - A Biomecânica de Meyerhold é um sistema de educação/treinamento para o ator criado por Meyerhold no início do século 20. Para fazer progredir esse trabalho, ele desenvolveu diversos estudos, com o objetivo de investigar alguns princípios essenciais para o trabalho do ator. Eram estudos específicos baseados em diversas fontes, tais como: esgrima, music-hall, comédia dell’arte, circo, teatro espanhol e pantomima. Enfim, materiais práticos extraídos de diversas culturas, para oferecer aos atores de seu estúdio um número expressivo de princípios específicos, que depois os ajudariam em sua representação, colaborando para o novo teatro que ele propunha. Biomecânica não é um estilo teatral, e portanto Dia desmanchado não é um espetáculo biomecânico. Neste trabalho, as ações foram construídas com base nos princípios do sistema  de Meyerhold, a partir do repertório técnico que venho praticando junto ao Teatro Torto e ao Centro Internacional de Estudos em Biomecânica Teatral de Meyerhold, em Perugia, Itália, com o mestre Gennadi Bogdanov, discípulo em segunda geração do encenador russo Meyerhold. Apropriar-se desta técnica e construir uma maneira pessoal de trabalhar com estes princípios foi o grande objetivo de pesquisa para a montagem, com uma gestualidade não naturalista, próximos do grotesco e da estilização.

Segundo - A peça conquistou os prêmios Açorianos de melhor ator e trilha sonora no ano passado. Qual a importância da música na criação da atmosfera do espetáculo e como ela influenciou no todo?

MB -  Isso é muito interessante, pois o trabalho de atuação está totalmente vinculado à música. Para mim, a música é uma grande parceira de cena, oferecendo atmosfera, ritmo e jogo. Durante todo o espetáculo, a música dialoga integralmente com as ações executadas em cena, sendo um alicerce fundamental para a obra.  Ela enfatiza o jogo de cena, caracterizado pelo duelo do ator com o tempo, a relação com o público, o espaço e os objetos. Este duelo influencia também na maneira como as ações são dançadas no espetáculo, sendo executadas dentro e fora do tempo.

Segundo – De acordo com a diretora Tatiana Cardoso, a peça fala sobre o tempo. Como protagonista, como você se relacionou com esse elemento e que maneiras encontrou para distorcê-lo em cima do palco?

MB - No início do processo foi muito difícil compreender as diferentes percepções de tempo que a diretora Tatiana vinha pesquisando.  Inicialmente, minha relação com o tempo era muito concreta: tínhamos uma temática básica no espetáculo – a espera. Dentro desta situação, criamos sequências de ações nas quais eu desenvolvia, brincava e duelava com o tempo, executando as ações  e deslocamentos  no contratempo, acelerando, ralentando...escrevendo as ações como partituras musicais. Porém, chegou um momento onde eu tive que compreender mais profundamente as questões do tempo, não somente na execução das ações, mas também no todo do espetáculo, como: entender o caráter de cada tempo, recheando as ações executadas em cena e as diferentes possibilidades que ele oferece; compreender  o tempo como ruptura, e que a vida as vezes não é resultado de uma escolha, ela somente é;  perceber, dentro de uma sequencia de ações precisas, que o tempo não é preciso, que as vezes é desordenado, que vai e volta sem controle, mergulhado no caos e na alucinação.  Enfim, motivado pela minha diretora Tatiana Cardoso, distorcer esta temática no palco tem sido um grande e belo desafio.

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