Marina de Campos
Dentre todas as pistas, a única que pode ser levada em conta é o sotaque. Já nas primeiras palavras – o jeito de pronunciar “pór exémplo” ou explicar o “zique-zaque das costuras” – denuncia que se trata de uma estrangeira adotada pelo Brasil. Mesmo assim, ainda é difícil fazer qualquer distinção. Os cabelos curtos grisalhos estão ao natural, as roupas discretas variam entre preto e branco, os assessórios não passam de relógio e óculos de aro vermelho, e nos pés ela traz um par de tênis. Passeia discretamente por entre o público como se mal quisesse ser reconhecida. Na hora da cerimônia de abertura, teima em fugir dos minúsculos holofotes do museu e se disfarçar entre a plateia. É possível ouvi-la sussurrar: “Não é preciso que me vejam, basta olharem estas obras nas paredes”. Dotada de uma simplicidade extrema, alheia a todos os prêmios, homenagens e o reconhecimento pleno ao redor do mundo, Maria Tomaselli abre sua exposição em Passo Fundo como se não fizesse mais do que um favor à sua arte.
Em sua passagem pelo Museu de Artes Visuais Ruth Schneider na noite da última quinta-feira, foi essa a impressão que a renomada artista austro-brasileira deixou. Por mais impossível que seja o fato de que alguém que percebe e transforma em protagonistas os mais injustiçados figurantes da vida seja igual a todos nós, ela finge exatamente isso. É claro que o que nos separa dela é uma sensibilidade aguçada, um faro para a beleza escondida nos escombros e o dom de fazer virar ouro tudo aquilo que toca. E o que ela toca – torna-se difícil de acreditar depois de olhar de perto a exposição – são caixas de madeira velha, maçanetas quebradas, gaiolas abandonadas, pedaços de lata e lonas remendadas de caminhão.
Passados 20 anos da exposição Oca Maloca, produzida com material de demolição, Tomaselli revisitou o tema quando percebeu o que o tempo faz com as pessoas e com as madeiras. Daí surgiu a série Vestígios. “Veja as mesas velhas, com riscos das facas, marcas de queimado. É isso o que enriquece o objeto, porque mostra que ele carrega uma história, então em vez de descartar isso, polir e passar tinta por cima, preferi preservar essa ação do tempo. Nas lonas, deixei os vestígios das intempéries, dos acidentes, dos furos, dos remendos”. Num paralelo entre essas marcas e as rugas e cicatrizes que cada corpo carrega, ela interfere o mínimo possível, como se desse apenas um empurrão naquilo que já é arte. “As primeiras telas com lonas que fiz usei só os remendos, pois achei que o desenho do acabamento dessa costura já se tratava de um grafismo incrível, depois fui mais ousada e passei a interferir mais, usei gravura e metal na lona e colei junto com os remendos. O mesmo acontece com as caixas de madeira, quando descasca uma tinta mas ela não sai, isso cria uma textura que eu não poderia criar pintando. É fascinante. O que faço é enxergar a beleza natural que o tempo imprime aos objetos”. E se torna fácil enxergar toda essa beleza após o filtro criativo de uma verdadeira artista.
Também professora
Aproveitando a chance rara de estar em contato com uma das principais artistas plásticas do país, os alunos do Curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo prestigiaram a abertura da exposição, que teve ainda uma mini aula ministrada por Tomaselli. Coordenadora do curso, a professora Mariane Loch Sbeghen acompanhou os estudantes e exaltou a importância desse envolvimento realizado na prática. “É fundamental que eles estejam ligados ao que acontece em relação à arte, especialmente quando uma mostra tão importante pode ser vista no nosso museu”, observou. Além dos acadêmicos, o coquetel de abertura da exposição contou com a presença do diretor da Faculdade de Artes e Comunicação Cassiano Del Ré, a coordenadora pedagógica do MAVRS Margarida Pantaleão, entre outros convidados.
Visite!
Exposição Vestígios,
de Maria Tomaselli
Exposição feita a base de restos de madeira, lonas de caminhão e materiais de demolição
Até dia 1 de
maio, no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider