Marina de Campos
Não estou e nem nunca vou estar preparada para escrever sobre a morte repentina de alguém como João Carlos Tiburski. Mas preciso tentar. Há poucas semanas fingi ter propriedade para falar do adeus dos olhos lilases de Elizabeth Taylor, mas não consigo traçar uma maldita linha sobre os olhos azuis do meu professor sem que meus olhos castanhos se encham de lágrimas. É assim mesmo, diz meu pai, certamente uma das maiores vítimas dessa história que provavelmente vou contar muito mal aqui. Na noite desse domingo ele perdeu seu melhor amigo – e isso se torna ainda mais grave quando estamos falando de homens incompreendidos, não raro taxados de loucos, almas incomuns que conseguiram encontrar-se em meio a tantos normais e fazer valer suas ideias mais impossíveis. “Agora, nesse mundo, me sinto um pouco mais sozinho”.
Tiburski era esse tipo de homem: de mente e presença grandes demais para ser entendido por todos, passava por excêntrico. A figura quase caricata – camisa meio aberta, barba branca-amarelada e o eterno cachimbo na boca – fazia dele um personagem fascinante, alguém que jamais passaria despercebido. A voz rouca e as frases nunca terminadas sem a interrupção de um pigarro eram seu estranho charme. Com tudo para ser um brutamontes, tratava-se na verdade de uma das figuras mais sensíveis que já conheci. Gostava de receber atenção, magoava-se facilmente e tinha pelos bichos uma paixão das mais ferrenhas. Não muito diferente de uma criança ainda carregada de bondade e até certa inocência.
Talvez por tudo isso eu não consiga acreditar nas coincidências que rondam sua partida, justo a de um homem que nunca deixou seu pensamento coincidir com o da maioria. Não pode ser simples acaso o fato de marcar a data de fechamento da primeira edição do reformulado Pra Ler para a segunda semana de abril, parecendo querer deixar pronta a sua última paixão jornalística; ou ainda o fato de, pouco antes, ter precisado se despedir da garça Blue, sua última paixão animal; e mais impressionante ainda, as águas do Capingui como cenário para sua triunfal saída. Há algo de místico, algo de incompreensível e ao mesmo tempo coerente nessa história, a última do nosso maior contador.
Mas me perco em tantas memórias e reflexões que já não sei mais o que deveria falar. Passaram poucos dias desde essa dura manhã de segunda-feira em meio à névoa, em que tivemos que caminhar rumo ao memorial e enfrentar a realidade, por isso ainda é difícil pensar sobre Tiba no passado, dizer quem ele foi. Ainda é, e espero que assim continue, pois agora não somos mais que centenas de jacarés à espreita, cuidando para que as criações dele não sejam esquecidas, que sua memória seja respeitada, que a escada esteja sempre cheia e que o conhecimento alternativo oferecido por Tiburski fora das salas de aula seja um dia compreendido. Assim como Drummond e Quintana em Copacabana ou na Praça da Alfândega, nessa mesma famosa escada da FAC ele mereceria uma estátua.
Em busca de algum resquício, vasculho minha estante de livros e encontro um enorme exemplar sobre Iberê Camargo, que ele enviou através de meu pai. Na primeira página, o recado simples: “Para duas pessoas inesquecíveis. Tive a felicidade de conhecê-los. Ass: Jacaré”. As lágrimas voltam a atrapalhar e não vejo saída a não ser terminar esse relato sem chegar perto de dizer tudo o que gostaria. Na vida ou mesmo depois da morte, ninguém conseguiu dominá-lo, nem mesmo na tentativa de traduzir quem ele era. Legítimo indomável, nesse momento João Carlos Tiburski é a pauta que eu jamais gostaria de ter utilizado.
Uma biografia
Apesar de carregar vários títulos, Tiba costumava zombar do mundo intelectual em que vivia, sabendo ser seu maior crítico e também dos vaidosos à sua volta. Por isso, provavelmente detestaria essa biografia em forma de currículo, mas aí vai.
João Carlos Tiburski nasceu em Erechim em 1949 e cresceu no interior de Barão de Cotegipe, onde trabalhava com seu avô. Mais tarde, já na adolescência, trabalhou em livrarias e comandou um programa de rádio sobre literatura. “Já tinha lido Balzac, Dostoiévski, Nietzsche, e o Dom Quixote, que sempre foi o grande livro da minha vida. Então eu sempre lia muito e já escrevia”, conta ele em entrevista à jornalista Roberta Scheibe. Acabou por formar-se em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 1977, especializando-se em Sociedade, Cultura e Política da América Latina pela UFRGS quatro anos depois. Mais tarde graduou-se Mestre em Letras pela mesma universidade. Em 1987 formou-se em Jornalismo também pela UFRGS, o que lhe abriu as portas para trabalhar em veículos como o Correio do Povo, em que atuou junto com célebres autores como Mario Quintana, Sergio Cappareli e Jaime Cobstein no Caderno H e no Letras e Livros. Além de editor do Instituto Estadual do Livro, trabalhou por anos como professor na UFRGS, na UNIJUÍ e no curso de Jornalismo da Universidade de Passo Fundo desde 3 de março de 1997, ministrando disciplinas como Redação Jornalística, Jornalismo Experimental, A Reportagem e Planejamento Gráfico. Em Passo Fundo também fez história editando o jornal Terceira Lâmina ao lado de Abelino de Campos, e criando o livro Crônicas Faquianas, agora em sua quinta edição. Sem deixar de abraçar causas sociais, trabalhou com o Instituto Carlos Barone e, recentemente, com o Case.
Confissões
Alguns depoimentos colhidos nos últimos dias e uma das inspiradas crônicas de João Carlos Tiburski
Tiba não nadou em linha reta
Chamávamo-lo carinhosa e respeitosamente de Tiba. Tínhamos as orelhas puxadas pela alcunha de jacarés, genericamente como alunos. Seu escaninho na Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo Fundo (RS) continha um adesivo escrito João Carlos Tiburski. Amanhã em sua lápide os três nomes serão acrescidos das datas de nascimento (por volta de 1950) e morte (em 2011).
Como mestre ensinou-nos sobre jornalismo e sobre a vida, muito mais em noitadas no Boka Lanches do que nas salas e laboratórios da academia. Foi principal inspiração para que eu e meu amigo e colega Daniel Bittencourt criássemos um periódico independente e atrevido batizado de Cadafalso, para deleite do mestre e horror do conservadorismo local.
Nossa dupla de focas recebeu de seu humor bukowsquiano o apelido de faísca e fumaça, em referência àquele desenho animado que os jovens estudantes de comunicação hoje não fazem ideia do que se trata.
Seu principal ensinamento para mim foi uma teoria repetida nos corredores da FAC e nas bebedeiras por aí, de que há dois caminhos a se seguir profissionalmente. O primeiro é uma linha reta, no qual você escolhe o futuro e corre atrás dele voraz e impiedosamente, ultrapassando obstáculos, até alcançar suposta plenitude. O segundo é formado por linhas curvas, em que o sujeito leva valores, encontra paixões e encara novos desafios pela vida afora, aproveitando as esquinas e os tropeços, com serenidade e firmeza, até que encontre por acaso uma placa de luz vermelha na beira da estrada onde se lerá: fim.
João Vicente Ribas
Ser TIBURSKI
Em 1997 conheci João Carlos Tiburski. Foi na época da primeira turma do curso de Jornalismo, e foi quando criamos o Terceira Lâmina, um jornal independente com os textos produzidos pelos próprios alunos. O Tiba o definiu como uma aventura romântica e lúcida. Para fazê-lo, não pedimos a benção ao Vaticano, afinal diplomacia e Tiburski nunca combinaram... Mas nos últimos tempos ele se mostrava um tanto insatisfeito e eu lhe dizia: “Cara, tu tens que ser mais TIBURSKI! As pessoas que o temem é por pura admiração”. E ele abria um sorriso e dizia: “Eu agora estou tentando resolver as coisas com diplomacia...”. Eu pensava: “bem , vou acreditar, mas não minta nunca mais...” Depois de alguns dias encontrei ele dentro de um caixão, e por muitas vezes pensava: ele mudou mesmo. O velho TIBURSKI não ficaria quieto e exposto. Saltaria dali e iríamos ao primeiro bar, logo já teríamos mais um projeto de um novo livro ou jornal. Por volta das 19 horas de segunda-feira, entre amigos e familiares, eu tive mais uma esperança. Quando entraram estranhos na sala com uma tampa e parafusos para fechar o caixão... Que decepção, acho que por diplomacia aceitou. Aceitou também quando lhe colocaram em um carro preto e o levaram para cremá-lo... Mais uma vez.
Abelino de Campos
Coisas que se dizem sobre um herói
Hoje morreu o meu herói. Não sei nem como começar esse texto. A princípio o que me passa pela cabeça é que um jacaré não poderia morrer afogado, ou que seria uma ironia um gonzo jornalista que bebe e fuma morrer na água. Mas morreu. Soube da notícia através de uma mensagem de celular. Estou há mais de 10 mil quilômetros de meu herói e não posso fazer nada. Sobre o Jacaré, ou o João Carlos, tenho muitas lembranças, como dá pra conferir no blog Santa Saliência. Na época a entrevista rendeu muitos risos e muitas histórias. Até hoje me lembro dele contando causos e tossindo entre uma tragada no charuto e uma piadas. Tudo que eu aprendi até hoje foi ao lado do meu mestre: aprendi a escrever jornalisticamente, compreendi a diagramação, sobretudo aprendi a editar os textos jornalísticos. Jacaré me ensinou a ser gente, a pensar de forma singular. Tiba foi o maior contador de histórias que já conheci. Uma vez me disse que se quiséssemos ser escritores, ou jornalistas, deveríamos escrever todos os dias. Às vezes penso que não estou mais cumprindo a lição de casa. Hoje gostaria de escrever palavras bonitas ao meu mestre, tão poéticas quanto os textos que ele escrevia naquele computador em sua sala. Mas hoje não consigo ser poética. Minha taquicardia ainda não passou e não quero acreditar que meu herói se foi. Heróis se perdem todos os dias. Mas nunca me disseram como dói perder um grande amigo. A ferida sangra em um rombo no peito. Vá em paz, meu mestre, meu amigo. Continuaremos espalhando seus conhecimentos “de encontros e desencontros paradidáticos”.
Roberta Scheibe
Lolita ou metacrônica
João Carlos Tiburski
Estou cada dia mais velho. Mais caduco. Mais louco. Já não tenho a “ardente paciência” de Neruda e Mário, personagens principais de O carteiro e o poeta, de Skármeta. Nem a “loucura mansa” de José Mindlin, possuído pela maior biblioteca particular do Brasil, tardiamente imortal da Academia.
Estou ficando velho e, infelizmente, só tenho uma vida para viver. Só uma vida e uma morte para ludibriar. Ler, escrever e ensinar já não são necessidades vitais. Prefiro escutar e decifrar a linguagem do silêncio; as frases do vento; o diálogo das árvores; o monólogo das pedras; os latidos da Lolita; o canto de Fredrico Tigrão O Grande, um galo fino feroz que diariamente transa com minhas vinte galinhas. Velho, falo com as roseiras, as rúculas, couves e beterrabas da minha horta. Narciso cego e perplexo, passo os feriados e fins de semana procurando nas águas do Capingui os segredos para vencer o lento e irremediável desinteresse pela profissão e negócios.
Estou cada dia mais velho e, para poucos ou muitos, louco e caduco...Sinto que “a coisa é feia e vem se debruçando” sobre a minha vida, como dizia Jacaré, o meu amigo Sérgio Metz, que partiu há alguns anos. Estou ficando louco, caduco e também velho. Agora percebo que a coisa é muito feia e já se debruçou sobre meu cadáver andante.
Mas a vida é um mar imprevisível, feroz e doce. Então, num dia qualquer, surge Lolita, numa rua de chão batido de um bairro periférico de Passo Fundo, onde fica o meu labirinto.
Magra e com uns cortes na cabeça. Mais sedutora e surpreendente do que a Lolita de Nabokov. Como eu, devia estar procurando uma nova vida, um lugar seguro, um lugar onde fosse amada e protegida. Levei-a para casa. Cuidei dela como “um soldado ferido na guerra que cuida de sua única perna”. Bassé alemã, deveria ter fortíssimas e terríveis razões para andar perdida, ferida e faminta pelas ruas de um bairro de gente simples.
Isso foi em outubro de 2005. Hoje, com ela, continuo envelhecendo por fora, mas sem sentir a dramaticidade interior de antes. Volteira a ler não mais nos livros, mas nos seus latidos, nas suas patinhas curtas e fortes, nas suas grandes orelhas. Como o personagem do conto “A escrita de Deus”, de Jorge Luis Borges, me dediquei a decifrar o enigma da vida nas manchas de sua pele, no balançar da longa cauda, na tristeza ou alegria de seu olhar doce e terno.
Com ela minha vida adquiriu um novo e vigoroso sentido. Fui aprendendo seu alfabeto de latidos e ela, o meu de silêncios. Passamos a travar formidáveis diálogos. Depressivos, mergulhas em profundos monólogos.
Num dias destes, pensando num encontro com alunos de Jornalismo da FAC sobre crônicas, perguntei:
- Lolita, como se escreve uma crônica?
- Au, au, au... Auauauau...
- Lô querida, não entendi bem.
- Au, au, au... Auauauau...
Foi aí que compreendi que crônica é um texto que sabe falar de tudo e com todos, porque é escrita com o coração e a sensibilidade sangrando. Ela é como um doce latido no ouvido da mulher amada. Fala dos ventos, das cascatas, dos relâmpagos e das pequenas e inesquecíveis coisas que ferem ou enternecem nosso cotidiano. Compreendi que ela tem a sabedoria de um Cronópio, ser fantástico e imaginário de Júlio Cortázar. É totalmente diferente dos Famas, seres imbecilizados e banalizados que não entendem que, afinal, não é necessário derrubar um eucalipto para curar uma dura de garganta. Basta passar numa farmática e comprar Pastilhas Valda.
A verdade é que Lolita mudou minha vida. Sempre está ao meu lado jogando bola, brigando de mentira, me ajudando a vistoriar nossos negócios aviários e sua futura indútria de ossinhos de galinha. Todas as manhãs, quando não resolve levar os jornais para o seu bunker, me traz O Nacional e Diário da Manhã. Muitas vezes as notícias já vêm mastigadas...