Marina de Campos
Pode parecer simplesmente um
exagero, mas a realização de uma mostra de cinema francês em Passo Fundo é algo nada menos que incrível, importante, marcante, emocionante, um episódio único que deve ser comemorado e, principalmente, prestigiado. Depois de passar por diferentes estados do país, a Mostra 1959 - O Ano Mágico do Cinema Francês chega a Passo Fundo nesta semana, trazendo à cidade alguns dos maiores clássicos da Nouvelle Vague, movimento de vanguarda que completou 50 anos em 2009. Como explica a sinopse do evento, com essa mostra o Sesc corrobora a profunda dívida do cinema moderno perante o universo criativo proposto por Godard, Truffaut e Resnais em seus filmes de estreia.
Inspirada na efervescência cultural da Nouvelle Vague francesa, a mostra busca incitar o público a sublinhar o gesto desses expressivos e desafiadores artistas, convidando os espectadores a participarem de um franco debate sobre a incrível capacidade que a arte tem de inventar e reconstruir o mundo e a nossa maneira de pensar. O evento gratuito não deixa espaço para desculpas: a oportunidade é excelente para quem deseja conhecer uma das correntes artísticas mais importantes do século 20, ao mesmo tempo em que assiste a filmes emocionantes, sagazes e divertidos que marcaram toda uma geração.
Segunda-feira, 9 - Acossado, de Godard
A garota americana de jeans e camiseta amarela do New York Herald Tribune acompanhada pelo bad boy com ares de Humphrey Bogart pelo meio da Champs-Elysées: uma das cenas mais memoráveis de todos os tempos. Não como uma sequência de Casablanca ou outro grande clássico. Memorável por sua naturalidade despretensiosa, pelo casal nada convencional, pela trama que mudaria os rumos do cinema produzido até então. O segredo de Acossado está na reunião de grandes gênios em prol de um único objetivo, que era o de transgredir. Com roteiro de François Truffaut, design de produção de Claude Chabrol, fotografia de Raoul Coutard, participação de Jean-Pierre Melville e direção de Jean-Luc Godard, não havia espaço para o fracasso: o filme era predestinado a ser ícone desde seu primeiro dia de filmagem. Em algum ponto desses 89 minutos, Jean-Paul Belmondo vira-se para câmera e diz: “se você não gosta da montanha; se não gosta da praia; se não gosta da cidade; então vá para o inferno!”. Está dialogando com o público, sem rodeios — fazendo exatamente aquilo que os diretores da Nouvelle Vague pretendiam fazer pelos próximos anos. A produção de um cinema de verdade, 24 fotogramas por segundo.
Terça-feira, 10, Os incompreendidos, de Truffaut
Para uma criança, não há tristeza ou alegria que seja pequena. E é isso que se vê em Les quatre cents coups, primeiro filme da saga de Antoine Doinel — personagem moldado por Truffaut e o ator Jean-Pierre Léaud ao longo de duas décadas. Carregado de uma beleza singela em contraste com a aspereza cruel da realidade, o primeiro longa do diretor que ajudou a inaugurar a Nouvelle Vague saiu do comum para tocar profundamente o público. “Quando foi exibido em Cannes, estarreceu a plateia. Nunca se havia visto uma fita tão espontânea e livre de convenções. Era a síntese perfeita daquilo que Truffaut pregava: feito na 1ª pessoa, meio jornalismo, meio poesia, e tão pessoal quanto uma confissão”, define Isabela Boscov. Ao contar a história de um garoto de 12 anos cercado pela decadência de sua família e pela rigidez hipócrita de sua escola, Truffaut falava da eterna solidão de uma criança. Para isso, não necessitou de grandes truques cinematográficos, mas apenas do olhar angustiado de Léaud a revelar sem nem uma palavra toda a essência de Os incompreendidos.
Quinta-feira, 12 - O batedor de carteiras, de Bresson
Foi Bresson o responsável por um dos mais simbólicos e sublimes filmes franceses de 1959. Já na cena inicial, somos apresentados à história completa do filme. Sabemos seu início, meio e fim. Uma história muito simples, simplória, quase inexistente. Nas sequências que se seguem, Bresson nos convida a acompanhar o drama de um homem comum com um desvio moral (é, como diz o título, um ladrão de carteiras). Faz isso através de uma estética gélida e dura que, ao contrário do que se pode imaginar, consegue captar de forma profunda e fascinante as mazelas da alma de seu personagem.
O jogo de encenação de Bresson chega ao seu máximo em duas sequências-chave: o fatídico roubo no metrô, onde acompanha em planos fechados as mãos que furtam carteiras nos bolsos dos passageiros, e o encontro na prisão, na cena final, um dos momentos mais sufocantes de seu cinema, engasgado num remorso comovente e angustiante.
Sexta-feira, 13 - Hiroshima, mon amour, de Resnais
Para Godard, “o único filme realmente diferente da Nouvelle Vague, o único onde havia outra coisa”. As palavras do diretor definem bem o que a obra-prima de Alain Resnais significou para a época: um exercício de escrita audiovisual único e contundente, onde o espectador não foi poupado de nenhum dos perturbadores detalhes de horror e amor que a vida oferece. Contando a história de uma atriz francesa que vai à Hiroshima e se envolve com um arquiteto japonês, Resnais se baseia nos geniais diálogos da escritora Marguerite Duras e costura duas tragédias aparentemente inesquecíveis: a bomba atômica e a história de amor vivida pela atriz em sua juventude, e interrompida pela morte do amante alemão. Mesmo baseado em dois momentos marcantes, Hiroshima, mon amour é um filme sobre o esquecimento. A trama vivida pelo casal nada mais é que uma luta doentia contra o inevitável ato de esquecer. Cientes de que a próxima história a ser esquecida será esta, ambos são consumidos pela angústia e se destroem com o peso de sua compaixão. “Você está me destruindo. Você me faz bem”.
Segunda-feira, 16 - Quem matou Leda?, de Chabrol
Quem Matou Leda? é um daqueles filmes que nada tem de convencional.Apesar de se encaixar na proposta do gênero whodunit, onde a trama consiste em descobrir quem é o assassino, o longa inverte a lógica e brinca com a perceção do espectador até o limite extremo. Um dos primeiros do consagrado Claude Chabrol, falecido no ano passado, o longa reflete a visão anarquista do diretor, em contraste ao controle absoluto nos objetos e na estética cinematrográfica em geral. Com outra grande atuação de Jean-Paul Belmondo, a produção carrega grandes doses de um humor irônico característico da Nouvelle Vague, o que aplica um raro dinamismo à obra que Chabrol lapidou até transformar-se em uma pérola que em nenhum momento se encaixava aos padrões da época, mas que por isso mesmo tornou-se atemporal e fadada a tornar-se clássico do ano mágico do cinema francês.
Assista!
CineSesc apresenta Mostra 1959 -
O ano mágico do Cinema Francês
Dias 9, 10, 12, 13 e 16 de maio,
sempre às 9h, no Teatro do Sesc
Aproveite, a entrada é gratuita