Cidadão Sobrevivente - 70 anos de Cidadão Kane

No ano de seu aniversário de 70 anos, Cidadão Kane tem versão restaurada em alta definição anunciada pela Warner

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Segundo ON

Radical, François Truffaut disse que Cidadão Kane resumia todos os filmes que já haviam sido feitos até aquele momento; mais do que isso, antecipava todos os que ainda estariam por vir. Por incrível que pareça, ele não estava exagerando. No topo das principais listas dos melhores filmes de todos os tempos, Cidadão Kane é um inegável marco do cinema que completa 70 anos ainda soberano e inabalável em pleno 2011, quando parece que tudo já foi feito - e refeito. Na ausência de novos marcos verdadeiramente revolucionários, o primeiro filme de Orson Welles torna-se novamente uma grande sensação ao ter uma versão especial em alta definição anunciada para o próximo semestre. Divulgada pela Warner, a notícia indica uma comemoração de aniversário à altura do longa de 1941 que foi dirigido, roteirizado e protagonizado por um Welles de apenas 26 anos, mas já então decidido a ditar padrões que ainda hoje são explorados pelo cinema. Pela idade do filme, o processo de restauração foi extremamente complexo, mas chegou ao fim a tempo. “O trabalho de recriar a aparência original do filme e limpar os efeitos do envelhecimento foi um processo difícil e feito quadro a quadro”, explicou Janet Wilson, uma das responsáveis pela restauração da versão original do filme que, além de voltar às locadoras em alta definição por blu-ray, também vai ser disponibilizado para download via iTunes, On Demand, VUDU e Amazon Instant Video. Além disso, o pacote contará com muitos extras, entre eles os documentários The Battle Over Citizen Kane e RKO 281, ambos baseados na vida do jornalista William Randolph Hearst, o mesmo que serviu de inspiração para a criação do personagem Kane. Já a edição de colecionador virá com um livro de 48 páginas com todo tipo de imagens relacionadas ao longa, além de memorandos e até correspondências trocadas durante a produção. Ainda sobre Welles, no início deste ano se falou na possibilidade de enfim levar às telas o filme inacabado The other side of the wind, de 1972, porém disputas judiciais continuam a travar o lançamento e privar o mundo de um pouco mais da genialidade do cineasta.

Roteiro original

Indicado a nove prêmios no Oscar e vencedor na categoria de melhor roteiro original, Cidadão Kane conta a história do polêmico milionário Charles Foster Kane, um magnata da imprensa norte-americana que vive seus últimos dias em reclusão e, ao morrer, pronuncia uma última e misteriosa palavra: “Rosebud”. A partir daí, um jornalista tenta descobrir mais sobre a vida de Kane e, em especial, o significado de sua curiosa declaração final. Ele entrevista diversas pessoas que conviveram com ele, o que faz com que o filme vá se desenrolando em flashbacks e tenha diversos pontos de vista diferentes.

 

 

Coluna de crítica de cinema de Daniel Dalpizzolo, do site www.cineplayers.com

Acima do bem e do mal

Ao falar de uma obra tão aclamada como Cidadão Kane, geralmente venerado como o melhor e mais revolucionário filme já feito, é preciso de cautela – algo tão importante quanto o respeito que deve-se ter pelo filme. O reconhecimento que o longa de estreia de Orson Welles recebeu com o passar dos anos transformou-o em uma peça histórica intocável, acima do bem e do mal, o que pode acabar limitando a discussão sobre ele. Mas acima do hiperbolismo que o envolve, é preciso reconhecer que Cidadão Kane de fato marca uma trangressão de formas de expressão, de narrativa e de linguagem audiovisual que determinou muito do que o cinema viria a apresentar anos após seu lançamento.
Ao equilibrar técnicas de romance literário com teatro e jornalismo, duas profissões pelas quais já havia transitado em seus parcos 26 anos de vida, Welles desmembraria o filme em um jogo propositalmente irregular de pontos de vista, de relatos e de memórias que fugiam completamente do padrão classicista de narração para trazer ao cinema americano uma nova dimensão de linguagem – tão assimilada por ele que se torna uma tarefa delicada mensurá-la. Assim o filme, que inicia com a morte de seu protagonista e a introdução de um mistério a ser desvendado sobre sua vida, se preocupa muito mais em questionar e desafiar o espectador do que em responder às perguntas que surgem ao longo de sua duração.
Por conta disso, não é difícil ler por aí ou ouvir de quem não está habituado a olhar filmes de sua época (1941) que Cidadão Kane é um filme “moderno”, apesar da idade. A excetuar o ritmo de encenação, o que se vê é um conto muito vivaz (e perfeitamente compatível com o cinema de hoje) de ascensão e declínio de um homem que, aos poucos, é reconstruído por um fluxo de imagens pescadas de diferentes pontos de vista, uma técnica que, mesmo tão copiada, segue impressionando pela habilidade de Welles em retratar seu personagem central, um magnata da comunicação egoísta e ambicioso, fugindo do registro conclusivo de sua personalidade para, ao contrário, apostar na incompletude deste registro.
O ousadia de Welles e a qualificação de seus parceiros, especialmente o fotógrafo Gregg Tolland, fez de Kane um filme revolucionário também esteticamente. A profundidade de campo, um dos conceitos básicos da concepção de uma imagem, ganhou nova amplitude com seus experimentos de luzes, lentes e ângulos – permitindo aos planos abrangerem várias ações simultâneas em pontos focais diferentes. A obsessão de Welles pela captura de imagens inusuais, perceptível em toda sua obra, trazia frescor ao filme e se somaria ao cuidado do diretor e de seu montador, Robert Wise, nas experimentações de fusão desses planos, o que fizeram de Cidadão Kane uma base para muitas das revoluções estéticas posteriores – como a Nouvelle Vague francesa.
Mas apesar das críticas elogiosas que recebeu à época, a perda do Oscar e o boicote de muitos componentes da indústria cinematográfica e da mídia fizeram com que uma áurea maldita circundasse Cidadão Kane e seu diretor. Com dificuldades para conseguir emprego em Hollywood, Welles passou o restante de sua vida filmando obras de baixo orçamento, participando de bicos como ator em outros filmes e, por muitos anos, tendo que se exilar dos Estados Unidos para poder filmar. Faria filmes melhores posteriormente, como A Marca da Maldade, sua obra-prima, e o brilhante jogo de encenação Verdades e Mentiras, um de seus últimos trabalhos, em 1973. Mas já em Cidadão Kane, marco inicial de sua imensurável contribuição ao cinema, deixava um legado maior do que a carreira inteira de muitos diretores consagrados por aí. Coisa digna de um verdadeiro gênio.

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