Hemingway e a morte

Com a morte equivocadamente anunciada por vezes em vida, Ernest Hemingway morria definitivamente há 50 anos, após uma brilhante carreira como escritor

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Foi numa ensolarada manhã de domingo que Ernest Hemingway encontrou-se com a morte, depois de procurá-la incansavelmente por toda vida. A seguiu até os campos de batalha durante a Primeira Guerra, caçou-a por toda África enquanto atirava em feras com as quais se identificava, procurou-a nos olhos corajosos de homens e bichos nas touradas da Espanha, quis nocauteá-la durante sua fase de pugilista, tentou arrancá-la do mar  em suas pescas nas águas profundas de Cuba. Com seus arrebatadores quatro casamentos, também tentou morrer de amor. Nada silenciava sua procura pela morte por vezes confundida com sede de vida.

Homem de ação, Hemingway não aguentou a espera: ao se levantar naquela manhã, vestiu seu robe de imperador, caminhou devagar até o vestíbulo, olhou demoradamente para os dois canos do seu fuzil de atirar em pombos e o posicionou na própria testa, puxando o gatilho alguns segundos depois. Às sete da manhã do dia 2 de julho de 1961 ele morria em definitivo, por suas próprias mãos, após uma série de prenúncios, avisos e notícias de falecimento precipitadas.

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No mesmo dia, ao saber da morte indiscutível do escritor, o colombiano Gabriel García Márquez redigiu em um só fôlego a crônica Um homem morreu de morte natural. “Desta vez parece ser verdade”. A incredulidade diante do fato não vinha apenas do desejo instintivo de que não tivesse acontecido, mas principalmente pela relação obsessiva que o autor sempre teve com a morte.

Não se trata de exagero: Hemingway foi um dos poucos homens a ler seu próprio obituário publicado nos jornais.  Aconteceu em janeiro de 1954, quando foi dado como morto durante mais de três dias após a queda de seu avião em algum lugar da zona dos Grandes Lagos da África Oriental. “As equipes de resgate encontraram-no alegre e meio bêbado, numa clareira da selva, a pouca distância do lugar onde repousava uma família de elefantes”, lembrou García Márquez.

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“A própria obra de Hemingway, cujos heróis não tinham o direito de morrer antes de padecer durante certo tempo a amargura da vitória, tinha desqualificado de antemão aquele tipo de morte, mais própria do cinema do que da vida”. Por incrível que pareça, essa não era a primeira vez que a morte de Hemingway virava notícia. Em maio de 1944, em Londres, Hem tinha morrido, segundo a imprensa, num acidente de automóvel.

Pois nada parecia forte o bastante para derrubá-lo, até que há exatos 50 anos atrás uma bala atravessou sua cabeça e fez tombar o homem que viveu a desafiar a morte. Seu suicídio foi atestado pela experiência no manejo de armas – nesse caso, um acidente seria improvável -, mas dificilmente aceito por um ‘argumento literário’. “Hemingway não parecia pertencer à raça dos homens que se suicidam”, explicou Márquez.

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A questão, então, talvez fosse genética. Parece que a ideia de tirar a própria vida nunca havia lhe ocorrido até o dia em que recebeu pelo correio, enviada por sua mãe, a pistola que seu pai utilizou para se suicidar, em meados de 1929, quando Ernest terminava de escrever Adeus às armas. Sem saber ao certo se a mãe queria que ele a guardasse como lembrança ou repetisse o ato do pai, demorou algumas décadas até decidir-se pela segunda hipótese.

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Mas essa evidência trágica se arrasta junto ao sobrenome: além de seu pai, dois de seus irmãos, seu filho Gregory e sua neta, a atriz Margaux Hemingway, cometeram suicídio. Uma das explicações encontradas por diversos estudiosos é a presença constante do transtorno de bipolaridade, apontado também como um dos responsáveis pela instabilidade literária do autor e, quem sabe, até mesmo por seus esparsos arroubos de genialidade.

Afinal, a morte também desceu sobre seus escritos: após escrever o clássico O velho e o mar e conquistar o Prêmio Nobel de Literatura, Hemingway se descobriu vazio.  “As palavras simplesmente não vêm mais”, chegou a afirmar. Se escrever era seu jeito de fugir à necessidade de morrer, seu destino estava mesmo traçado e caminhava rumo ao fim.

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Um homem morreu de morte natural, por Gabriel García Márquez

Desta vez parece ser verdade: Ernest Hemingway morreu. A notícia como- veu, em lugares opostos e distantes do mundo, os seus garçons de café, seus guias de caçadas, seus aprendizes de toureiro, seus motoristas de táxi, uns tantos pugilistas decadentes e algum pistoleiro aposentado.

Enquanto isto, entre os habitantes de Ketchum, Idaho, a morte do bom vizinho foi apenas um doloroso incidente local. O corpo permaneceu seis dias na câmara ardente, não para que prestassem honras militares, mas à espera de alguém que estava caçando leões na África. O corpo não ficará exposto às aves de rapina, junto aos restos de um leopardo congelado no cume da uma montanha, mas repousará tranqüilamente num desses cemitérios excessivamente higiênicos dos Estados Unidos, rodeado de corpos amigos. Estas circunstâncias, que tanto se parecem com a vida real, obrigam a acreditar que desta vez Hemingway morreu de verdade, na terceira tentativa.

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Cinco anos atrás, quando sofreu um acidente na África, a morte não podia ser verdadeira. Os grupos de resgate o encontraram alegre e semi-embriagado, numa clareira da selva, a pouca distância do local onde vagueava uma família de elefantes. A própria obra de Hemingway, cujos heróis não tinham direito de morrer antes de sofrer durante certo tempo a amargura da vitória, desqualificara de antemão aquele tipo de morte, mais própria do cinema do que da vida.

Em compensação, agora, o escritor de 62 anos, que na última primavera esteve duas vezes no hospital tratando uma doença da velhice, foi encontrado morto em sua casa com a cabeça destroçada por uma bala de espingarda de caça. A favor da hipótese de suicídio há um argumento técnico: sua experiência no manejo das armas afasta a possibilidade de acidente. Contra, há um único argumento literário: Hemingway não parecia pertencer à raça dos homens que se suicidam. Em seus contos e romances, o suicídio era uma covardia, e seus personagens eram heróicos apenas em função da temeridade e coragem física. Mas de qualquer maneira o enigma da morte de Hemingway é puramente circunstancial, porque desta vez as coisas ocorreram como devem ser: o escritor morreu como o mais comum de seus personagens, e principalmente em relação aos outros personagens.

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Em contraste com a dor sincera dos pugilistas, destacou-se nestes dias a incerteza dos críticos literários. A pergunta central é até que ponto Hemingway foi um grande escritor, e em que grau merece uma coroa de louros que a ele mesmo parecia uma simples narrativa breve, uma circunstância episódica na vida de um homem. Na realidade, Hemingway foi uma testemunha sôfrega da ação individual, mais do que da natureza humana. Seu herói surgia em qualquer lugar do mundo, em qualquer situação e em qualquer nível da escala social em que fosse necessário lutar encarniçadamente não tanto para sobreviver como para alcançar a vitória. A vitória era apenas um estágio superior do cansaço físico e da incerteza moral. No universo de Hemingway, a vitória não era destinada ao mais forte, e sim ao mais sábio, com uma sabedoria aprendida na experiência. Nesse sentido era um idealista. 

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Poucas vezes, em sua extensa obra, surgia uma circunstância em que a força bruta prevalecesse contra o conhecimento. O peixe pequeno, se era mais sábio, podia comer o grande. O caçador não vencia o leão porque estava armado com uma espingarda, mas porque conhecia minuciosamente os segredos de seu ofício, e pelo menos em duas ocasiões o leão conhecia melhor os segredos do seu. Em O velho e o mar — narrativa que parece ser uma síntese dos defeitos e virtudes do autor — um pescador solitário, esgotado e perseguido pela má sorte, conseguiu vencer o maior peixe do mundo numa peleja que era mais de inteligência do que de força.

O tempo demonstrará também que Hemingway, como escritor menor, comerá muitos escritores grandes, por seu conhecimento das motivações dos homens e dos segredos de seu ofício. Certa vez, numa entrevista, elaborou a melhor definição de sua obra ao compará-la ao iceberg de gigantesco volume de gelo que flutua na superfície: é apenas um oitavo do volume total, e é invencível, graças aos sete oitavos que o sustentam sob a água.

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A transcendência de Hemingway se mantém precisamente na sabedoria oculta que sustenta flutuando uma obra objetiva, de estrutura direta e simples, e às vezes concisa em sua dramaticidade. Hemingway só contou aquilo que viu com os próprios olhos, gozou e sofreu com sua experiência, que era enfim a única coisa em que podia acreditar. Sua vida foi uma contínua e arriscada aprendizagem do ofício, em que foi honesto até o limite do exagero: o leitor deveria perguntar quantas vezes esteve em perigo a própria vida do escritor, para que fosse válido um simples gesto do personagem.

Nesse sentido, Hemingway não foi nada mais, nem nada menos, do que quis ser: um homem completamente consciente em cada ato de sua vida. Seu destino, de certa maneira, foi o de seus heróis, que só tiveram uma importância passageira em um lugar restrito da Terra, e foram eternos pela fidelidade dos que os aceitaram.

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Essa é talvez a dimensão mais exata de Hemingway. Provavelmente não é o fim de alguém mas o princípio de ninguém na história da literatura universal. Mas é o legado natural de um esplêndido exemplar humano, de um trabalhador bom e singularmente honrado, que talvez mereça algo mais do que um lugar na glória internacional.

 

Clássicos do autor

O Velho e o MarO velho e o mar

Obra-prima vencedora do prêmio Pulitzer, conta de maneira épica a luta entre um velho pescador e um peixe na solidão do alto-mar. Com uma objetividade própria do jornalismo, o autor transformou suas experiências em Cuba num dos grandes romances da literatura norte-americana, virando filme em 1958. Com cerca de apenas cem páginas, O velho e o mar é um profundo mergulho na complexidade humana em contraste à natureza.

234335_4Por quem os sinos dobram

Publicado em 1940, mostra uma comovente história com a Guerra Civil Espanhola como pano de fundo. Novamente trazendo suas próprias vivências, o livro narra três dias na vida de um americano que se liga à causa da legalidade na Espanha de maneira cruamente bela. Dando nome ao disco de Raul Seixas de 1979, o livro também inspirou o filme homônimo de 1943, com Gary Cooper e Ingrid Bergman.

adeus às armasAdeus às armas

No inverno de 1917, um americano motorista de ambulâncias se alista no exército italiano e é ferido em ação. Ele recebe os cuidados de uma jovem enfermeira. Quando se percebem apaixonados, tentam fugir dos horrores da guerra indo para a Suíça em busca de paz e felicidade. História vivida por Hemingway na vida real, o trágico romance também virou filme em 1957.

pariseumafestaParis é uma festa

Livro não-ficcional, traz um Hemingway de 22 anos em plena Paris, lendo Tolstói, Dostoiévski e Stendhal, e convivendo  com Gertrude Stein, James Joyce, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, na busca por alcançar seus dois objetivos primordiais: ser um bom escritor e viver em absoluta fidelidade consigo próprio.

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