Carta ao pai

Companhia teatral do Maranhão apresenta adaptação da obra de Franz Kafka em Passo Fundo

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Marina de Campos

Franz Kafka conseguiu fazer de Carta ao pai o mais honesto retrato da opressão de um filho por seu progenitor, e levar isso ao teatro pode ser uma fórmula explosiva. A tensão existente entre duas pessoas é sempre suficiente para encher um palco, mas o abismo de dramas, rancores e palavras não-ditas entre dois membros da mesma família pode ser demais - uma inundação tão intensa de olhares, suores, gritos mudos e silêncios na qual o espectador corre o risco de se afogar. Assim como o livro escrito pelo consagrado escritor tcheco em forma de desabafo, o espetáculo Pai & Filho não tem medo de ir na raíz de uma relação historicamente conturbada, abordando uma de suas versões mais comuns. Afinal, o quão normal já foi e ainda é o difícil amadurecimento de um filho sob o olhar duro de um pai que, no instinto de incentivar e fortalecer, acaba por afastar, oprimir e magoar para sempre o seu rebento? Diretamente inspirada no curto romance de Kafka - um dos mais populares ao lado de A metamorfose e O processo -, a peça da Pequena Companhia de Teatro, de São Luiz do Maranhão, se apresenta em Passo Fundo neste sábado, dentro do projeto Arte Sesc - Cultura por toda parte.
Na peça, as lembranças e reclamações de Kafka são transformadas em cenas vividas pelos atores Jorge Choairy e Cláudio Marconcine, que incorporam os personagens tão antagônicos de corpo e alma, já que não apenas o físico de cada um denuncia sua postura em relação ao outro, mas também as suas trocas de olhares, tom de voz e modo de agir a cada novo pequeno embate. Desenvolvendo uma linguagem teatral forte e visceral, o espetáculo apresenta um homem aprisionado e oprimido pelo poder que seu pai tem sobre si. Ele até procura enfrentá-lo, mas se vê preso e impedido de avançar pela força de seus pensamentos, o que anula a possibilidade de que uma conversa aberta se estabeleça e que a opressora hierarquia familiar seja finalmente quebrada. O espetáculo Pai & Filho acontece neste sábado, 28 de abril, às 20h, no Teatro do Sesc Passo Fundo.

Pequena Companhia

Em atividade desde 2005, a Pequena Companhia de Teatro, do Maranhão, concentra duas décadas de trajetória dos seus componentes no desenvolvimento de uma linguagem que potencialize seus conteúdos e na democratização do acesso a esses resultados por meio de debates, oficinas e circulação dos seus espetáculos. Jorge Choairy, Cláudio Marconcine, Katia Lopes e Marcelo Flecha desenvolvem uma pesquisa continuada para o treinamento atoral e o aprimoramento de suas encenações através do Quadro de Antagônicos – instrumento criado pelo coletivo e que serve como base da sua metodologia. Por compreender que o teatro se sustenta no ator e no espectador, a Pequena Companhia de Teatro elabora seu trabalho na construção de um ator pleno. Seu treinamento físico-energético parte da oposição como fundamento para o desenvolvimento do repertório do ator. Corporeidade, energia e habilidade a serviço da comunicação com o espectador. O espetáculo Pai & Filho foi contemplado com o Prêmio Myriam Muniz de Teatro 2009 para montagem e com o Prêmio Myriam Muniz de Teatro 2010 para circulação.

Filho

No espetáculo Jorge Choairy vive Franz Kafka, um dos maiores escritores de ficção da língua alemã do século 20, nascido em uma família de classe média judia em Praga, em 1883. Extremamente influente dentro da literatura ocidental, o escritor tem como grande clássico o popular A metamorfose, mas também romances como O processo, O castelo e Carta ao pai. Com uma atmosfera obscura característica, a sua literatura é marcada por dilemas existenciais relacionados a alienação e perseguição. Morreu de tuberculose aos 40 anos.

Pai

O ator Cláudio Marconcine vive Hermann Kafka, pai do famoso escritor. Foi descrito como um “grande empresário egoísta e arrogante”, e um “verdadeiro Kafka em força, saúde, apetite, a sonoridade da voz, eloquência, a auto-satisfação, presença de espírito e o conhecimento da natureza humana”. Depois de trabalhar como representante de vendas de viagem, Herman se estabeleceu
como varejista independente e abriu uma loja na qual Franz chegou a trabalhar.

O original

    Um tratado sobre as relações familiares de submissão e poder. Como não se identificar? Franz Kafka parece ter escrito Carta ao pai não com a concepção planejada de um livro - ao fim da vida ele chegou a renegar toda sua obra - mas sim como literalmente uma carta ao seu pai que ele sabia jamais seria entregue. Algo que, de fato, torna o livro uma experiência literária ainda melhor e mais sincera do que nunca. Dirigindo-se ao pai durante todo o texto, Kafka não conta a um terceiro as mágoas que carrega, mas as joga diretamente ao leitor, ao “você” que aparece tantas vezes e que recebe como se fosse para si mesmo todas aquelas injustiças, memórias e divagações. Revelando-se por inteiro, ele vai e volta no tempo sem qualquer rigor literário, narrativo ou cronológico, parecendo lembrar-se de fatos, constatações e adendos à medida em que escreve as linhas, o que aproxima quem lê e o torna cúmplice. Sua personalidade reprimida, tímida e insegura vai ganhando motivo a cada nova história, desde as incoerências da infância, as repreensões exageradas, o abuso de poder com a desculpa de estímulo e todo um universo de situações que cabem na distância entre um pai e um filho divididos por uma simples geração. Apesar de focar na figura do oprimido, o livro tem como um de seus maiores trunfos o fato de que Kafka consegue chegar perto de ser imparcial em sua análise. Ele não condena o pai e não quer que nós o condenemos. Tenta encontrar explicação para cada ato, com a certeza de que o pai sempre teve suas próprias razões. Ele não acredita na maldade de um pai para com um filho, e está certo nisso. Ainda que se torne inevitável olhar pelos olhos do escritor e compadecer-se com a sua situação, também se percebe aos poucos o quão difícil é criar um outro ser, tornar-se um criador e libertar sua criatura, ser justo, firme e ao mesmo tempo amável com um pedaço de si mesmo que logo terá a própria vida. Um dos maiores dilemas da existência, quem sabe?

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