por Marina de Campos
Tudo até aquele momento havia sido difícil de reconhecer. Como se o show quisesse ser mais que um show, algo como um desafio, um instigante jogo de adivinhação. Uma concepção de espetáculo ligeiramente diferente da usual: não uma simples reprodução ao vivo, mas um exercício de criatividade, um teste de flexibilidade e uma pérola diferente a cada apresentação – gostem ou não. Um desafio lançado à plateia, involuntariamente jogada na situação de desafiada, e um desafio também ao próprio músico, encurralado na situação imposta por ele mesmo. Dar aos outros exatamente aquilo que eles querem é fácil, talvez fácil demais para esse homem que no provável auge de sua carreira virou o volante até o fim para a direção contrária e aceitou ser vaiado em um de seus shows mais emblemáticos, como quem se sacrifica por um bem maior, um Jesus e também um Judas pregados na mesma cruz.
With no direction home,
Like a complete unknown
A experiência deve ter o elevado, pois ainda hoje repete o mesmo ato fazendo diferente do que esperam, não para contrariar, mas simplesmente porque assim deseja. Por mais avisado que o público esteja quando dá de cara com o palco habitado, tudo é contrário ao que se espera. As canções viajam longe, seguem rumos inesperados até mesmo para a banda, isso quando já não começam irreconhecíveis. São versões, são composições que poderiam ter sido, são chances de uma nova música de Bob Dylan a cada introdução. Sua figura também surpreende. As fotos de sua turnê atual ilustraram todas as matérias sobre o show, mas ainda assim temos na cabeça uma outra imagem. Não está ali o menino de cara limpa e gaita presa ao pescoço, ou o escabelado de algum tempo depois, nem o adulto de olhos pintados tão penetrantes, o roqueiro de guitarra em punho e coletes cavados ou o jovem senhor de gravata borboleta e brilhantes paletós. O novo estilo comprova um novo artista, uma fase em andamento e não apenas os ecos de um passado de esplendor. Esse músico de hoje traz um certo ar de blues e country, o legítimo cidadão americano em seu paletó preto recortado pela gola branca da camisa e o chapéu de caubói preto de aba reta como um toque final em sua face sempre indecifrável.
Like a rolling stone
E não estava sendo nada fácil até o momento em que ele se aproxima do microfone para começar uma música pela décima quinta vez naquela noite, e de repente o mistério se desfaz e tudo fica fácil, leve e natural. Tinha chegado a hora, então. Na primeira vibração dos instrumentos a multidão vibra em uníssono sem qualquer dificuldade de compreensão, surpresa pela trégua depois de tantos quebra-cabeças e truques geniais. Estava ali, perfeitamente reconhecível, a canção mais esperada da noite, e aquela pela qual gerações inteiras esperaram por tanto tempo até que ele a compusesse. Mas por que, justo agora, ele segue à risca a partitura? A explicação para que esta seja a única faixa intocável de seu repertório, aquela que nem mesmo o próprio Bob Dylan ousa macular, é que ela já não é mais apenas uma música, um objeto sonoro maleável e disposto a se modificar. Like a Rolling Stone é hoje uma entidade livre que não pertence mais a ninguém, um código reconhecível por qualquer nação ou tribo distante, um primitivo e preciso meio de comunicação. Um hino, uma ode, um poema, um épico, um templo, um clássico. Ou seja lá como você queira chamar.
Enquanto quase todos se deixam levar pelo êxtase de estar simplesmente ouvindo – porque à distância muitos não estão enxergando nada, e outros fecham os olhos por vontade em sua própria viagem – alguém na plateia diz que “é óbvio, nessa todo mundo se anima porque sabe cantar”. Pode até ser verdade, mas discordo do tom de reprovação. É isso que faz da música algo maior, uma ideia que transcende gerações e o que mais quer que seja. A beleza desse momento é justamente alcançar um espírito de coletividade embalado pelas mesmas notas. A concepção de Bob Dylan trazida pelos jovens que dançam emocionados é certamente muito diferente daquela que possui o casal de idosos que se aventurou a assistir ao show da pista, ainda que estáticos e um pouco incomodados com o tumulto à sua volta.
How does it feel?
O que une a todos é esse momento congelado no tempo. Esses segundos em que a música instrumental deveria apenas rolar entre uma estrofe e outra, mas o público não resiste à sua ânsia de entoar “How does it feel?” mais vezes do que a versão original, como uma verdadeira pergunta destinada a si mesmo, e no palco aquele senhor de idade se livra de repente de toda a sua marra e abre um grande sorriso de aprovação. Como quem diz, “ok, tudo bem, eu não mudo os acordes dessa música nos shows, mas nessa noite essa versão incontrolável de vocês vai ser permitida. Nesse momento, ela é a versão que eu mesmo compus”. E agora que o show aparentemente acabou, mas começou de novo com um bis inesperado e uma Blowin’in the Wind que o público ainda não conhecia, você simplesmente pergunta a si mesmo um milhão de vezes “como você se sente?”, e agora finalmente você sabe exatamente a resposta.
Foto: Rodrigo de Andrade, editor do site Os Armênios
Vídeos: Marina de Campos
Ps: Mas é claro que o show não foi apenas Like a Rolling Stone e as divagações que vêm com ela. Para quem não conseguia enxergar direito, as sombras da iluminação discreta e intimista produziram sombras enormes no fundo do palco, como se revelassem o verdadeiro tamanho desse homem e de sua magnífica banda. Para quem reclamou da voz diferente que o Dylan de 70 anos possui, deve-se levar em conta que esta é apenas mais uma das mudanças de sonoridade em seu meio século de carreira, e outra: se a voz não é mais a mesma, o fôlego para destruir com sua icônica gaita de boca ainda é poderoso e capaz de levantar uma plateia de cerca de 7 mil pessoas. Diferente em tudo, o músico também alterou o velho costume do atraso e fez algo talvez inédito: iniciou o show 5 minutos antes, permanecendo no palco por quase 2 horas. Para quem foi ver o artista, e não uma simples lenda, foi demais.