A morte de Carlos Fuentes

Autor de clássicos como A morte de Artemio Cruz, escritor mexicano Carlos Fuentes morreu como um dos gigantes da literatura latino-americana

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      Em uma terra habitada por gigantes, quando um deles tomba o mundo inteiro estremece. Mas lá não há luto nem sepultamento, pois a aura que escapa do corpo de proporções colossais é tão desmedida e se desfaz tão depressa que em poucos minutos já misturou-se ao ar. O enorme corpo inerte jaz ali como se continuasse vivo, e aqueles que seguem de pé amanhecem no dia seguinte como se não houvesse acontecido. Porque sabem que os gigantes não morrem, apenas tornam-se ainda mais imensos.

      A morte de Carlos Fuentes nesta semana é muito parecida com o tombar de um gigante em uma terra de iguais, pois é como se virasse de repente mais um imponente rochedo na paisagem  desenhada por esses monólitos batizados de Borges, Neruda, Cortázar, Onetti, Benedetti, Juan Rulfo, Octavio Paz. Aqueles poucos que restaram de pé - Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano -, agem como agem os gigantes em sua terra: contentam-se em se alegrar com o destino do amigo, o mesmo do qual eles próprios não irão escapar. Fadados à imensidão da eternidade, fazem todos parte de um território talvez mais mágico e fascinante que esse dos gigantes: o universo vivo da literatura latino-americana.

Fé no futuro, fé no homem
      Falecido na última terça-feira, 15 de maio, aos 83 anos, o escritor mexicano Carlos Fuentes parte como que para lembrar ao mundo a grandiosidade desse movimento do qual fez parte. Autor de clássicos como A morte de Artemio Cruz, Aura, Terra Nostra e A região mais transparente, Fuentes fez da literatura o seu instrumento para a construção de um dos mais perfeitos retratos do México, seja em sua dimensão mítica, política ou social. O mesmo se deu em países como Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia e Peru, e a amizade que surgiu entre os que estavam por trás disso foi a força para explodir aquilo que ficou conhecido como o “boom” da literatura latino-americana: de repente, falar de seu país era falar de todo um continente, uma nação esfacelada em muitos pedaços mas ainda assim unida pelo idioma, esse ouro que os espanhóis aqui deixaram quando pensavam levar consigo toda a riqueza.

      Brilhante escritor mas também ativista político como grande parte de seus contemporâneos, Fuentes possuía essa consciência de unidade latina, provavelmente a sua grande inspiração e motivação para a escrita. “Carlos Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro do ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. E escrevia assim: acreditando”, lembra o tradutor Eric Nepomuceno sobre o autor mexicano. “Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, em seu ofício, Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em nosso dia-a-dia”, define o tradutor que foi amigo pessoal de Fuentes e de tantos outros ícones literários do continente. Presente em todos os grandes momentos desse movimento como um espectro de incentivo, Fuentes foi grande parceiro daquele que hoje melhor representa a corrente. Na introdução de Cem anos de solidão, Nepomuceno fala da profunda amizade entre o mexicano e García Márquez, o qual conheceu nos seus tempos de roteirista de cinema. “Certo dia, Márquez desabafou: ‘vou-me embora para a Colômbia, não consigo mais continuar trabalhando como roteirista, é muito humilhante’. Fuentes respondeu: ‘não se esqueça, Gabo, que estamos fazendo cinema para financiar os romances que queremos escrever. Lembre-se que você tem que escrever seu grande livro’”. Do lembrete amigável nasceria o clássico que levou García Márquez a se tornar Nobel.

Não acredite no que dizem os jornais
      Aclamado como um vanguardista pela ousadia e inovação de seus romances, Fuentes talvez não seja o mais famoso, mas foi como o hipocentro desse grande terremoto que sacudiu a América Latina e que ainda hoje pode ser sentido. “Quando Cortázar morreu repentinamente, eu estava em Nova York. Vi no jornal. Telefonei para García Márquez – que estava no México. Disse: “Gabo, tenho uma notícia terrível. Nosso grande amigo Julio Cortázar morreu!”.  Houve um momento de silêncio. Depois, García Márquez disse: ”Não acredite em tudo que lê nos jornais.” Assim como sabia naquele momento, García Márquez também não deve ter acreditado no que disseram os jornais do mundo inteiro esta semana, afinal sabe bem o que acontece com os gigantes quando fingem partir daqui.

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