2ª Mostra Sesc de Teatro abre com monólogo de Caco Ciocler

II Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo vem para se consolidar com espetáculos de destaque no cenário nacional e presença do consagrado ator Caco Ciolcer

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    Entre restos de madeira podre e pregos enferrujados prontos para dar o bote, um homem animal faz de uma construção abandonada a sua própria cova. Sem jamais deixar de escavar, cria um sombrio e infinito labirinto de fugas e retornos, como quem finge correr de um invasor sem nome mesmo sabendo que é de sua própria sombra que se esconde.
    Considerado o testamento literário de Franz Kafka por se constituir como a mais perfeita metáfora de sua relação com o mundo - e também um dos contos que deixou inacabado ao morrer -, A Construção é ponto de partida para o espetáculo homônimo idealizado e protagonizado por Caco Ciocler. No texto que se revelou durante uma sessão de análise, ele encontrou o seu discurso e a sua verdade como artista, tornando a montagem da peça uma ideia quase obsessiva que ganhou contornos de realidade após a inclusão do diretor Roberto Alvim no projeto.
    Juntos, eles decidiram transpor para o palco o espírito de dualidade do conto: ao encarnar em um primeiro momento o escritor desesperado no ato da escrita, Ciocler vai se transformando lentamente no personagem principal, uma espécie de toupeira que foge da opressão do mundo, materializada em um monstro perseguidor, cavando uma labiríntica construção debaixo da terra. Uma das fábulas mais fortes e sombrias da ficção kafkiana, o conto se transformou em um espetáculo igualmente profundo e claustrofóbico, construído  com o deliberado propósito de incomodar.
    E agora é exposto a essa experiência intensa e poderosa que estará o público passo-fundense na próxima semana, quando Caco Ciocler estrela a abertura da II Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo. Ao trazer um dos espetáculos mais atuais e aclamados do centro do país, a mostra se consolida como um importante e já essencial evento do calendário artístico local, num claro reflexo de todo o empenho e esforço da unidade em promover cultura nestes cinco anos de atuação em Passo Fundo.
   Comemorando seu aniversário com a mostra, o Sesc realiza quatro dias de intensa programação, apresentando espetáculos do Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, além de oficinas teatrais e intervenções urbanas. Depois de A Construção, a mostra segue na sexta-feira, com o espetáculo infantil A Tempestade e os Mistérios da Ilha, da gaúcha Santa Estação, a comédia carioca Ninguém falou que seria fácil, na noite de sábado, o espetáculo de rua MIRA – Extraordinárias diferenças, sutis igualdades, na tarde de domingo, e à noite encerrando a mostra o drama clown O Não-Lugar de Agada Tchainik, da paulista Lume Teatro. O aguardo espetáculo A Construção acontece na próxima quinta, 28, às 20h, abrindo a II Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo. Apesar de se encontrar atualmente na estrada com a peça, o Segundo conseguiu que o ator concedesse uma breve entrevista ao caderno, contando detalhes sobre a sua visão do espetáculo. Confira!

Segundo - Esse conto lhe surgiu em uma sessão de análise, então desde aí se trata de uma questão muito pessoal. Mas qual era ou qual passou a ser a sua relação com a literatura, com Franz Kafka e com as angústias da vida de escritor?

Caco Ciocler - Eu estava atrás de um discurso que realmente me interessasse...de um assunto que me fosse  caro e íntimo...e encontrei esse discurso no conto do Kafka. Eu não conhecia o conto, que me foi indicado pelo meu analista. A primeira leitura foi um assombro! Finalmente eu encontrara a tradução ficcional de um discurso que me interessava e mobilizava profundamente.
 
Assim como em A Metamorfose, nessa história Kafka também utiliza a metáfora do homem transformado em bicho, nesse caso uma espécie de toupeira cavando sua toca. Na peça, o próprio processo de criação do escritor também está presente. Como ator, qual foi o tamanho desse desafio?


Eu não senti, nunca, no processo, essa pressão do desafio! Isso nunca passou pela minha cabeça. Quando a obra faz sentido para o artista, quando sua expressão é uma necessidade, e não uma conveniência, não há o que temer...eu estava fazendo aquilo para Deus, e não para agradar ninguém. A Construção para mim é uma confissão!

Como A Construção se trata de uma iniciativa sua, no lugar de ser escalado você teve a oportunidade de escalar um diretor, e escolheu Roberto Alvim, parceiro de outros espetáculos. Como foi realizar com ele esse trabalho tão íntimo e sombrio? Como você define a atmosfera desse espetáculo?

Durante o processo de ensaio da peça 45 Minutos, também dirigida pelo Alvim, ficou óbvio para mim que ele era a pessoa certa não só para dirigir A Construção como para fazer a complexa adaptação do conto para uma narrativa teatral. A coisa toda foi muito leve e natural...tentamos algumas formas que não funcionavam e, naturalmente, fomos caminhando em direção à concepção definitiva. Quando ela surgiu ficou claro que tínhamos decifrado o enigma. Foi tudo muito natural! A atmosfera do espetáculo é claustrofóbica...não poderia ser diferente!

Construção inacabada

Escrito poucos meses antes de sua morte por tuberculose em 1924, o conto A Construção talvez não passe do fragmento de uma obra inacabada, mas ainda assim é um dos escritos mais expressivos da carreira de Franz Kafka e, consequentemente, da literatura mundial. Aos poucos se revela uma criatura que vive sob a terra em tunes e esconderijos que ela mesma construiu. Porém, mais do que habitar, a confusão de túneis serve para proteger seu morador do mundo lá fora, visto que ele jamais relaxa ou esquece de suas preocupações: invasores, desmoronamentos, ataques súbitos e o que mais se possa imaginar. Condenada à angústia, a criatura passa seus dias escavando, planejando, desenvolvendo estratégias, alargando ou estreitando buracos para não sufocar em sua própria paranóia. Metáfora de Kafka para a sua situação de temeroso e oprimido perante o mundo, o conto também aborda um pouco da agonia do escritor em seu impulso de criar e, assim, desvencilhar-se de seu próprio desesperando colocando-o no papel. O conto foi publicado no Brasil no livro Um Artista da Fome/A Construção, pela Companhia das Letras.

Confira todos os detalhes sobre a programação da 2ª Mostra de Teatro Sesc Passo Fundo nas próximas edições de ON.

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