Marina de Campos
"Nasci da crise, e todo meu trabalho surgiu da crise. Há uma história pela qual tenho muito carinho, pois a iniciei com meu pai enfermo, hospitalizado, e era um momento que dentro dessa crise eu podia me refugiar desenhando. Como artista, a partir do momento que começo a trabalhar me sinto transportado a outro universo. Apesar do mau momento que estava passando, eu desfrutava do meu trabalho, era um refúgio muito importante. Como vão se dar conta, nunca necessitei ir ao psicólogo, porque meu escape sempre foi fazer quadrinhos". Penso ter ouvido uma nota de embargo em meio ao seu sonoro castelhano, ou quem sabe uns olhos quase marejados apesar da penumbra do palco, mas assim que sua fala acaba e vem a próxima pergunta, entendo que só pode ter sido uma miragem. Não estaria ali, vulnerável e comovido, o próprio Eduardo Risso, não o homem que deu vida a assassinos, criminosos, gângsters e justiceiros dos mais obscuros, sempre semiprotegidos pelas sombras e respingados de um sangue vibrante num tom incerto entre o laranja e o vermelho. Não, Eduardo Risso faz mais sentido com sua voz firme e inalterável, seus olhos sarcásticos e questionadores, sua figura digna de um talentoso artista, que como todos quando circula entre os outros parece estar levitando a alguns centímetros do chão. Para entender a grandiosidade do nome do ilustrador argentino dentro do universo dos quadrinhos, é preciso falar de 100 Balas. Uma das melhores e mais originais obras lançadas nas últimas décadas, a série roteirizada pelo genial Brian Azzarello traz a atmosfera da literatura pulp e do cinema noir dos anos 30 e 40 para contar uma trama que passa por um século de conspirações e esbarra no caminho do agente Graves, personagem central da história. Publicada em cem edições entre 1999 e 2009, a HQ acompanha os passos desse homem do qual se sabe muito pouco além de sua estranha missão de entregar maletas contendo 100 cápsulas de munição irrastreável, uma pistola e provas incontestáveis para injustiçados que tiveram suas vidas arruinadas. Ao oferecer essa espécie de licença para matar, ele interfere em destinos e constrói um fascinante panorama sobre o lado mais sórdido do comportamento humano, numa fábula de tantas camadas e tão cheia de detalhes que alcança facilmente a grandeza e a complexidade de uma obra literária. Mais que isso, claro, já que ao enredo brilhante se somam os primorosos desenhos de Risso, um mestre na arte de criar tensão e suspense.
Uma geral da ComicCon
Vencedora de prêmios Harvey e Eisner repetidas vezes, 100 Balas é apenas uma das elogiadas criações de Risso, estrela da segunda edição da Multiverso ComicCon, convenção que aconteceu em Porto Alegre no último final de semana, 23 e 24 de junho, e reuniu no colégio Marista São Pedro alguns dos nomes mais prestigiados dos quadrinhos brasileiros atuais.
Convidado estrangeiro desta edição, o argentino interagiu com o público em sessões de autógrafos e pelos corredores do espaço, além de participar de três mesas de debates: sobre sua trajetória, sobre o atual momento da DC Comics, onde trabalha hoje, e sobre a linha Vertigo, através do qual publicou 100 Balas no fim dos anos 90. Entre uma e outra de suas aparições, o evento teve momentos marcantes, como a discussão sobre o mercado editorial com a presença de Levi Trindade, editor sênior da Panini, Sidney Gúsman, editor-chefe do Universo HQ e da Maurício de Sousa Produções, e Fabiano Denardin, do selo Vertigo. “Esse é um momento excelente para os quadrinhos no Brasil, nunca houve tanta variedade de gêneros e nacionalidades nas bancas”, afirmou Gúsman. “E outra: nenhuma editora é empresa de caridade, se é publicado é porque tem público e dá dinheiro!”, brincou o irreverente editor, pedindo ainda que o público se unisse à campanha “Dê um quadrinho de presente”. Outro debate interessante foi a questão dos super-heróis homossexuais, com os profissionais da Dínamo Studio. “Ainda que isso possa ser apenas uma jogada de marketing, qualquer iniciativa é válida se for para diminuir o preconceito e mostrar que opção sexual não muda caráter e que um homossexual pode sim ser um herói e um exemplo”, afirmou Elvis Moura, citando a recente revelação sobre a sexualidade do Lanterna Verde. Dividiram os momentos mais divertidos os painéis sobre os filmes Os Vingadores e Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, que estreia no fim de julho sob muita expectativa, e ainda as apresentações de cosplay, com direito a desfiles e paródias bem-humoradas. Outro ponto alto foi a presença maciça de artistas nacionais que figuram no mercado norte-americano atuando nas gigantes Marvel e DC Comics, como Luke Ross, Daniel HDR, Cris Peter, Eddy Barrows, Renato Guedes, Mateus Santolouco e Rafael Albuquerque, vencedor do Eisner por Vampiro Americano.
Uma paixão em comum
O artista gaúcho foi inclusive citado por Risso quando questionado sobre quem admirava atualmente. ”Acreditem que não é porque estou aqui, mas hoje quem mais admiro são os brasileiros, essa nova geração é incrível, Rafa Albuquerque, os gêmos Bá e Moon, estão criando uma identidade própria que o país não tinha”, afirmou o argentino. Ainda que o restante da programação preparada pela editora Multiverso para o evento tenha sido fantástica - reunindo mais de 3 mil pessoas nos dois dias! -, quem roubou a cena foi mesmo o artista argentino. “Azzarello vendeu 100 Balas para a Vertigo e precisava de um ilustrador. Na época não existia computador e os desenhos de amostra se mandavam por fax, então o editor da época o chamou para que visse três artistas, e tive a sorte de ser o primeiro que ele viu. Azzarello tomou a página e na hora avisou que não precisava ver outros. Estava decidido”. Risso falou ainda sobre o início da carreira internacional, motivada pela crise econômica argentina. “Assim cheguei ao mercado italiano, depois por outra crise passei ao americano, e agora com esta nova crise não sei, vou aonde me abrirem as portas!”, brincou. Depois de citar sua participação no polêmico Before Watchmen, falar de referências como Alberto Brecchia e Moebius e revelar não se importar muito com prêmios, ele encerrou sua fala expressando seu inesgotável amor pelos quadrinhos. “O melhor desse caminho é a quantidade de amigos que ganhei em diferentes partes do mundo. Já passei por muitas coisas difíceis, mas recordo de tudo com alegria, porque me sinto bem fazendo o que faço, para mim isso é paixão. E quando você sente paixão pelo que faz, releva os maus momentos e guarda os melhores. E isso é maravilhoso”. Sem que se desse conta, Eduardo Risso resumiu a paixão de todos os que se reuniram ali para que, pelo menos por dois dias que passaram rápido demais, pudessem dar uma pausa às suas vidas, partir para um incrível universo paralelo, e celebrar com todo o entusiasmo e honestidade possível essa paixão em comum pelos quadrinhos.
Lista de legendas da galeria de fotos
1- Entrevista com Cris Peter, colorista indicada ao Eisner
2- Painel sobre os Vingadores com Eddy Barrows, debatedor, Luke Ross e Edson Gandolfi
3- Plateia da tarde do primeiro dia
4- Estande da White Russian Society
5- Grupo de cosplay no pátio do colégio São Pedro
6- 15 minutos de fama posando para as fotos
7- Imagem geral do colégio São Pedro
8- Crianças e toys numa das salas da Multiverso ComicCon
9- Painel sobre o mercado editorial: Sidney Gúsman, Levi Trindade, Erico Assis e Fabiano Denardin
10- Eduardo Risso sorrindo para a pergunta da plateia
11- Argentino Eduardo Risso durante debate
12- Ilustrador de 100 Balas na sessão de autógrafos
13- Sidney Gúsman em divertido painel
14- Painel sobre Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, com Sidney Gúsman, Thedy Corrêa, debatedor e Edson Gandolfi
15- Desenho de 100 Balas
16- Página de Eduardo Risso
17- Novo projeto com Azzarello, Homem do Espaço
18- Desenho do Batman assinado por Risso