Marina de Campos
Estar entre as cento e vinte duas mil setecentas e sessenta e seis pessoas que escolheram viver o Festival de Folclore é ter um domingo triste após dez dias de felicidade absoluta. Pois só quem não se escondeu em sua própria rotina e optou por se entregar inteiramente é que sabe o tamanho e a intensidade da semana que passou, algo que pode até ser chamado de evento por quem está de fora, mas que para nós foi muito mais.
Ainda somos felizes
O Festival é uma experiência diferente de qualquer outra porque, assim que você entra por aquela enorme estrutura, anda pelos corredores de brita à procura do melhor lugar, se posiciona em uma das cadeiras ou no ponto mais alto da arquibancada e finalmente abre o coração para as próximas três horas que estão por vir, nada mais existe lá fora. Guerras e conflitos distantes, a violência na porta de casa, as discussões sobre poluição e fim do mundo, suas intrigas de família, o preço da cesta básica, o que você precisa fazer no dia seguinte. Tudo desaparece. Não são mais de quatro mil pessoas reunidas para discutir ou questionar, mas simplesmente para celebrar.
E o prazer e a leveza do que acontece ali vem do fato de que o que esses grupos nos trazem é a manifestação humana mais antiga e mais pura, e parecida em qualquer lugar do mundo. Com a dança folclórica, evocam uma ingenuidade e espontaneidade que parecem ter sido para sempre perdidas no dia a dia. De repente, a velha frase que diz que a vida era melhor antigamente se revela de outra maneira: a vida não era melhor ou mais fácil, e nem éramos mais felizes, apenas perdemos costumes que ajudavam a ir levando. A fazer sorrir, se expressar com o corpo, enxergar o outro.
É só o que explica esse encontro transcendental debaixo da lona. Compreendendo isso se torna fácil compreender também por que o festival deste ano teve recorde absoluto de público, superando expectativas ao encher todas as noites, mesmo quando não se esperava. Ou, por outro lado, entender por que todos esses artistas dedicam parte de sua vida a isso. Ensaiam incansavelmente e viajam incontáveis quilômetros, mas é claro que nada pode ser mais recompensador do que chegar em uma cidade como Passo Fundo, que os abraça e não hesita em transmitir todo seu carinho, e viver noites intensas encerradas com um público de milhares de pessoas gritando seus nomes em êxtase, por terem sido magicamente despertadas para uma felicidade inocente que, por mais que não soubessem, ainda existe. Se o mundo caminha para outra direção, o Festival é um grito de resistência que vai se fazer ouvir por muito tempo.
Um clichê compreensível
Clichê falar do clima, mas não pode ser coincidência a total reviravolta que se deu entre a noite de sexta e a manhã de sábado em Passo Fundo. Depois de vários dias de sol e um calor acolhedor em pleno agosto, o tempo fechou a cara assim que se deu por conta: o festival estava mesmo acabando. O último dia amanheceu cinza, chuvoso e mais melancólico impossível, imitando o estado de espírito dos artistas e voluntários que realizavam suas últimas atividades com o sentimento dividido. Senhor do tempo, pareceu irritado por ainda assim ser incapaz de adiar o fim, e mostrou sua ira com uma incansável garoa acompanhada de vento cortante, proibindo que os grupos vindos de todo o mundo fossem embora sem provar do famoso inverno gaúcho.
Dos bastidores ao centro do palco
Nada forte o suficiente para impedir que, por volta das seis da tarde, centenas de pessoas já se encontrassem a caminho da Gare, e uma hora depois o circo já estivesse completamente lotado. Ao contrário do clima tranquilo dos dias anteriores, a noite se aproximava com forte expectativa, reconhecida não apenas nos rostos ansiosos do público, mas também lá atrás, nos bastidores, onde os artistas aproveitavam pela última vez a energia dos camarins. Enquanto os italianos treinavam seu número especial de um lado e os turcos confraternizavam perto do bar, a maioria se aquecia e tirava fotos de recordação, mas alguns dançarinos e voluntários não conseguiam disfarçar a melancolia, afundados nos sofás enquanto fingiam se concentrar.
Tudo deixado para trás quando a cerimônia oficial de encerramento começou. O texto do protocolo já deixava clara a atmosfera que teriam os próximos momentos. Além de batizar a nova estrutura do festival como “casarão da cultura”, os apresentadores falaram do sucesso desta edição, da saudade que já começava a dar sinal e da imediata expectativa para a próxima edição. “Amigo Paulo Dutra, ninguém pode tirar o Festival de Passo Fundo”. Uma vez no palco, o presidente agradeceu patrocinadores, voluntários, artistas e em especial o público, que soube receber tão bem o festival depois de quatro anos. Depois do tradicional “Até 2014!” e de declarar, “em nome da paz mundial, encerrado o XI Festival Internacional de Folclore de Passo Fundo”, em inglês e português, deixou o palco para dar espaço à última passagem dos quinze grupos desta edição.
Entre homenagens
Apaixonados pela cidade, não foram embora sem homenagens. A cada número uma nova surpresa: muitas bandeira do Brasi, uma enorme bandeira do Rio Grande do Sul tremulando entre vestidos coloridos, um garoto do Mato Grosso vestido de gaúcho e dando um show de chula, um número de ilusionismo de Cuba, um incrível duelo dos italianos lançadores de bandeiras com estandartes de Inter e Grêmio. Também houve quem transformou nestes dez dias voluntários em artistas. Grupos como o Chile levaram vários passo-fundenses para dançar as voluptuosas coreografias dos nativos da Ilha de Páscoa, para delírio da plateia. Mas a maior homenagem e prova de confraternização foi a apresentação musical preparada especialmente para o encerramento, em três dias de oficina com Fabiano Lengler. Antes das apresentações individuais, cerca de sessenta músicos de diferentes grupos trouxeram seus instrumentos e apresentaram a música Gaúcho de Passo Fundo de forma impecável, emocionando a plateia.
Pois não aceitaremos
Nada abalou a animação da última noite de espetáculo, mas quando os segundos finais da apresentação de cada grupo começavam a se aproximar, ficava difícil evitar. Na expressão do jovem argentino de moicano que, em sua pose final firme e furiosa, bufava de emoção para segurar o choro, ou nos olhos marejados da cantora de flor no cabelo do Espírito Santo, que deixava lentamente o palco. Ou talvez quando o exército de voluntários vestido de azul subiu ao palco para a derradeira apresentação do hino do festival, e alguns não podiam mais conter as lágrimas. Visivelmente emocionado, o ator Rodrigo Vilanova falou por todo o grupo de voluntários, essenciais para o evento. “A gente chega a embargar a voz porque é um orgulho sem igual saber que nós, aqui em Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, tem a capacidade de fazer um festival dessa grandeza, que é considerado pelos grupos um dos melhores do mundo. Nós voluntários, que mal dormimos nesta semana, fizemos tudo com muita dedicação, com muito amor.
Trabalhei em turno integral, manhã, tarde e noite, então quando tem Festival a minha vida é o Festival, vivo isso até o fim e vou viver o Festival sempre que ele existir, pois enquanto eu tiver forças eu vou doá-las ao festival”. De chapéu e figura imponente, o vice-presidente Cledson Basso deixava para trás qualquer armadura ao abraçar o presidente Paulo Dutra. Este, por sua vez, tentava disfarçar a emoção na voz, mas era difícil se a própria pergunta vinha também embargada. “É complicado falar sobre tudo que a gente sentiu aqui. Esse grupo de voluntários que trabalharam o tempo inteiro, essas manifestações da plateia, todo mundo abraçando o Festival. É um momento muito difícil de falar, mas é uma sensação de dever cumprido, e é muito bom sentir isso. Esperamos que todo mundo apoie e que estejamos aqui em agosto de 2014”, afirmou. Mas Paulo Dutra não deve esperar que todo mundo apoie e que estejamos aqui em 2014. Depois desta semana, nós simplesmente exigimos que o próximo festival aconteça o quanto antes. Nós não aceitamos que qualquer coisa interrompa novamente esse caminho, nós vamos fazer o que for preciso, nós vamos sair às ruas com passeatas e manifestações, vamos sensibilizar patrocinadores, vamos incomodar o estado e o país, vamos fazer o décimo segundo Festival Internacional de Folclore acontecer. Daqui a dois anos, nós nos vemos lá!
Fim de semana de despedida e saudade
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