“Ai, mas que saudade, gente!”, exclama a professora Dalva ao começar a vasculhar a montanha de papéis, documentos e fotografias trazidas por Mariane e despejadas sobre a mesa da sala de estar da casa da Educadora Emérita da 26ª Feira do Livro de Passo Fundo. Coordenadora do evento por várias edições, Dalva Bisognin ganha agora essa merecida homenagem pelos quarenta anos que dedicou à educação, e sobretudo pela força e o talento para ser um verdadeiro motor de movimentações culturais como a Feira das Etnias, o projeto Autor Presente, as Jornadas Literárias e a própria Feira do Livro.
Junto com ela sempre esteve a professora Mariane Loch Sbeghen, hoje coordenadora do curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo, e outra grande entusiasta da feira desde a primeira vez em que realizou a sua famosa Mostra da Gravura. Com toda a intimidade do mundo, não precisam de mais que alguns minutos para começar a se lembrar das incríveis histórias que viveram juntas, naturalmente unidas por essa paixão em comum. “Eu sempre cuidei de toda a parte da programação, dos autores, dos livreiros, enquanto ela tinha noção de toda a estrutura, da administração, então foi um casamento perfeito, acabamos formando uma dupla da pesada!”, brinca Dalva, depois de reclamar que Mariane “roubou” todas as suas fotos e que deveria lhe dar muitas cópias.
O acampamento militar
Em meio ao acervo aleatório, se deparam com a imagem de uma grande barraca verde. “Olha essa, como não tínhamos grande estrutura além das casinhas dos livreiros, decidimos pedir para o Exército algumas barracas do quartel onde realizávamos bate-papos e sessões de autógrafos. Cabia só umas 15 cadeiras debaixo dela, mas a gente dava um jeito. Ficava parecendo um enorme acampamento de milicos!”, se diverte Mariane lembrando do jogo de cintura que tinham para driblar as dificuldades.
De repente elas se entreolham e lembram automaticamente de outra boa história desses tempos complicados, mas tão divertidos. “A verdade é que o dinheiro era curto e naquele tempo nós dávamos para cada participante um troféu especial, mas chegou num ponto que o dinheiro acabou. Então eu ficava na sala da coordenação e, dependendo de quem passava, algum amigo ou conhecido, eu atacava pedindo contribuição para comprar um troféu, como uma espécie de patronício. Ninguém ficou sem!”, recorda a professora Dalva. “Tinha que ter cara de pau mesmo, mas em prol do livro nós fizemos muita coisa, porque acreditávamos mesmo na ideia”. Olhando as fotos, desde as primeiras edições em que participaram até a consolidação na praça Marechal Floriano, com grande público e ótima estrutura, Dalva se surpreende: “Como nós evoluímos, né amiga?!”. Sim, evoluíram muito, colaborando decisivamente para a potência que é a Feira do Livro de Passo Fundo hoje em dia.
Entre despertadores, frangos e abacaxis
E a convivência durante aqueles intensos dias de feira era quase familiar. “Quando chegava a época quem me acordava não era o despertador, era a Dalva. Naquele período, quem mandava na minha vida era ela!”, relembra Mariane. Dalva concorda. “Nós morávamos na praça, literalmente. O tapete da minha sala ia pra feira, nós levávamos coisas da nossa própria casa pra lá, fazíamos milagres mesmo”. Mariane explica. “Isso porque a gente queria dar um nível pra feira, a gente olhava pra Feira do Livro de Porto Alegre e queria chegar lá”.
E a verdade é que as colaborações chegavam de todos os lados. “Nossa, muita gente se engajou junto com a gente, colaborou muito, nós representamos essa história mas só funcionou porque todo mundo acreditava, ajudava a fazer tudo acontecer. Os primeiros livreiros, como Sofia Bortolon, Darcisio Rambo, Iduir Comim, ele por exemplo ia a Porto Alegre buscar os escritores com o próprio carro, então existia uma parceria muito grande, uma entrega total”, observa Dalva, recordando logo de um presente especial que recebeu em uma das edições. “Um ano eu até ganhei dos senhores que frequentavam o Bar Oásis um saco de abacaxis bem no dia da abertura da feira!”.
Com muita empolgação e sempre com bom-humor, elas encaravam o que aparecesse, de bom e de ruim. “Nós nos revezávamos para levar os escritores para almoçar no restaurante, pois apenas uma tinha a sorte de ir a cada vez. Lembra o que todos os outros almoçavam, Mariane?”. Ela mal contém as gargalhadas. “Um frango assado que dividíamos ali da padaria da esquina!”. O espírito era realmente de aventura. “Cada ano era uma loucura, a gente nunca sabia o que podia acontecer ou o que faríamos para resolver, mas chegamos lá”, completa Dalva.
Os lendários temporais
Uma das verdadeiras lendas da Feira do Livro de Passo Fundo são os seus temporais, e elas lembram de boas histórias nesse sentido. “Nunca vou esquecer do Iot em uma palestra de abertura, olhando o vendaval e dizendo que estava com medo de ser eletrocutado”, diz Mariane. “Nesse ano começaram a cair coisas do prédios, e nos ligavam a noite perguntando o que íamos fazer, foi apavorante! A gente se olhava e não sabia o que fazer”. Ela conta que um rio de água passava bem no meio da feira. “Era muita água, muito vendaval, e a gente enfrentando como podia”.
Elas ficam em dúvida sobre revelar tantos detalhes tragicômicos, mas embarcam na brincadeira. “E lembra do púlpito? Pegamos um púlpito de acrílico emprestado da Jornada, que o vento levou. Tivemos que explicar que tinha quebrado, pagar um púlpito novo”, conta a professora de Artes Mariane.
Cansadas, mas sobretudo satisfeitas
Depois de tantos risos e até algumas lágrimas graças a tantas lembranças trazidas à tona, elas se mostram satisfeitas em recordar esse que foi um capítulo especial de suas vidas. Sobre a sensação de finalizar cada edição, após tanto trabalho e contratempos, elas não deixam espaço para melancolia. “Cansadas, mas satisfeitas! De ter conseguido trazer tantas pessoas para a praça e fazer tudo acontecer”, resume a Educadora Emérita. “Acho que o que mais nos emocionava era ver as famílias passeando pela feira, ver que acontecia mesmo um encontro, havia vida ali, existia uma alma na feira”, complementa Mariane.
Fieis companheiras de feira, elas representam esse amor legítimo de uma cidade inteira pelos livros, e mostram que dedicar a vida por coisas como a cultura e o conhecimento realmente valem a pena, e rendem grandes memórias. “Deus é muito bom, pois ele dá aquilo que merecemos e aquilo que podemos aguentar. Por isso fizemos tudo isso e hoje estamos aqui, satisfeitas!”, conclui Dalva, como só uma grande professora é capaz de fazer. A homenagem à Educadora Emérita Dalva Bisognin acontece na abertura da 26ª Feira do Livro de Passo Fundo, neste sábado, 3 de novembro, às 10h, na Praça Marechal Floriano.
Dalva educadora
“É motivo de orgulho ser lembrada pelo trabalho realizado em prol da educação. Comecei em 1970 em Tapejara, logo vim a Passo Fundo, passei por escolas como Cecy, IE, Conceição, até a Universidade. Foi um tempo muito prazeroso, e quando digo prazeroso é que eu sentia prazer mesmo, me divertia demais, cada ano, cada turma, era maravilhoso. E até hoje eu encontro ex-alunos que me dão abraços que aquecem a alma, sinto que realmente criei laços, deixei uma gotinha de contribuição na vida de cada um deles. E a minha causa sempre foi mesmo a leitura, sempre valorizei isso, pois a leitura é a base para você ser alguém, saber se expressar, oferecer ao mundo o que tem dentro de si. Sinto saudades imensas, do dia a dia da aula, do aluno, do diálogo, da amizade que brotava dali, pois é uma renovação constante. Ninguém ensina ninguém, é um eterno aprendizado de ambas as partes, foram quaranta anos de troca.”
As incríveis aventuras de Dalva e Mariane na Feira do Livro!
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