Neste feriado o Brasil perdeu um de seus maiores escritores, mas Passo Fundo perdeu ainda mais: perdeu um dos órgãos vitais da Jornada de Literatura. Integrante da equipe organizadora ao longo de vários anos e tradicional coordenador de debates do evento, o escritor e dramaturgo Alcione Araújo faleceu devido a uma parada cardíaca aos 67 anos, deixando para trás uma trajetória extremamente produtiva e uma vida dedicada ao amor pela literatura. Amigo da coordenadora Tania Rösing, abraçou a causa das Jornadas desde a primeira visita que fez a Passo Fundo, história que relatou em um depoimento escrito especialmente para o caderno de abertura da 14ª Jornada, produzido por O Nacional em 2011. A nossa homenagem é lembrar ao leitor alguns trechos onde estão suas palavras carinhosas sobre a Jornada, a cidade e o povo que aqui vive, e demonstrar assim a falta que esse carinho nos fará a partir de agora.
“Era agosto, 1999. Para vir à Jornada pousei em Porto Alegre. Sob o casaco de couro e o suéter de lã, a chuva agulhava a carne e o frio doía no osso. E ainda faltavam quatro horas de ônibus até Passo Fundo. (...) Eu ouvia, curioso, até que fui convidado: que idéia tirar tanta gente de casa, para falar de literatura! Escritores, professores, críticos, cinco dias e noites, discutindo o quê? Temas? Estilos? Semiologia? Lingüística? Mercado editorial? Teses acadêmicas? Ou só autografando livros, como na Bienal! Por que fazer Jornada tão longe, em época fria e chuvosa, num país que não lê?
(...) Calor humano eu senti na recepção festiva das professoras, agasalhadas para a neve. Uma delas, robusta, atitude decidida, gestos firmes, se apresentou com voz enérgica: “Sou a professora Tania Rösing, coordenadora do evento. Sejam bem vindos à 8ª Jornada de Literatura”. (...) À noite, sob a lona do circo, estava na plateia da abertura, com cinco, seis mil pessoas no picadeiro e arquibancadas, em contagiante participação festiva. Nos dias seguintes, trabalho em vez de festa, a emoção sempre presente. Mesas se sucediam, temas diferentes, distintos expositores, e platéia atenta, querendo saber. O clima sereno vem das dirigetes e jornadetes, atenciosas e orgulhosas do que fazem, e do público: educado, inteligente e sensível.
(...) Cidades frias, onde se busca recintos fechados, costumam ser discretas, quase distantes. Encasacados e encolhidos, todos parecem austeros e inacessíveis. Não é assim em Passo Fundo. A população, de aparência saudável, é gentil e receptiva. Garçom, porteiro, lojista ou taxista, mal identificam o convidado da Jornada, são simpáticos ao dar informações, e, às vezes, se dispõem a conversar. Orgulham-se da Jornada, por razões diferentes.
(...) Vamos festejar os 30 anos da Jornada, que sobreviveu aos dilúvios que afogam as boas idéias! Na euforia, não esqueço o sangue, suor e lágrimas deixados nas ante-salas, as longas reuniões, extensos relatórios, exaustivas justificativas. As viagens para amealhar fundos, aeroportos lotados, vôos atrasados e frios quartos de hotel. Sem a obstinação dos visionários, os sonhos abortam. Por isso, de malas prontas para Passo Fundo, levo uma apreensão, disseminada entre os escritores. Avizinha-se a aposentadoria da Prof. Tania Rösing, o que abre dúvidas sobre o futuro da Jornada. É inimaginável que fique ameaçada depois de 30 anos. É vital manter acesa a chama da Jornada de Literatura.
Porque sob o céu de lona, em vez de estrelas, brilham as metáforas sobre o homem, a vida, a sociedade e o mundo. A Jornada é um espaço-tempo de convivência, no qual se reúnem artistas e interessados na arte, para falar dos mistérios da criação, da percepção e da significação. Como a literatura se dedica ao homem, à vida, à sociedade e ao mundo, não se trata de discutir o que ou como se escreve, mas discutir em que idioma foram escritos, e podem ser lidos e entendidos, o homem, a vida, a sociedade e o mundo.”