Artigo: Teixeirinha Bangue-Bangue

Artigo produzido por João Vicente Ribas, jornalista e mestre em história

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A gente botava gravata, penteava o cabelo pra trás com brilhantina e se acomodava numa das duas mil cadeiras do Cine Teatro Pampa. Fôssemos moças, um laquê armava a peruca e lá íamos também. Na tela, não víamos astros de Hollywood, apesar do bangue-bangue estar garantido. Era como um espelho, onde nós mesmos brilhávamos na trama do ídolo da música e do cinema, Teixeirinha. Um dos filmes inclusive foi rodado aqui. Não vivi estes tempos, pois cheguei a Passo Fundo só em 1999, quando o gauchismo já havia impregnado o imaginário da cidade.

Nas primeiras cenas do filme Gaúcho de Passo Fundo, lançado em 1978, Teixeirinha chega de carro, com um adesivo colado na traseira contendo o slogan “Passo Fundo, Che”. Daí uns paulistas que também estão chegando indagam se ele é gaúcho. É a “deixa”, para que durante todo o longa-metragem o herói tente “provar” que é. Tira até bala de revólver do ombro da prenda na ponta da faca.

Trata-se do décimo filme do artista, concebido para ser gravado na capital do Planalto Médio, e para isso obteve recursos públicos municipais. Este feito acabou sendo o principal propulsor da ideia de que Passo Fundo é muito conhecida no Brasil e no mundo por ser Terra de Teixeirinha.

Vitor Mateus Teixeira nasceu em Rolante (RS) em 1927. Como cantor e compositor, gravou 69 discos, vendendo mais de 18 milhões de cópias. De acordo com o pesquisador Henrique Mann, seu estilo era contestado às vezes, pois começou a carreira cantando samba e sempre aparecia alguém pra dizer que ele era mais sertanejo, que não fazia o tipo gaúcho tradicional. Faleceu em 1985 e teve seu corpo velado no Estádio Olímpico em Porto Alegre, em um evento digno de grandes estrelas midiáticas. Foi sepultado vestido de branco, junto a uma bandeira do Rio Grande do Sul, uma do Brasil e outra da cidade paranaense de Crissiumal (onde consta que ele tinha muitos fãs e amigos).

É. Parece que Passo Fundo não foi a única cidade que se fez associar ao artista. Em 1962, a Câmara Municipal de Vereadores concedeu a Teixeirinha o título de “Cidadão Passo-Fundense”. O cantor receberia a mesma honraria das cidades de Rolante, Santo Antônio da Patrulha e Soledade. Para cada título, o artista compôs uma música, fosse antes ou depois de recebê-lo.

Depois da gravação da canção “Gaúcho de Passo Fundo” (1961), do LP “Saudades de Passo Fundo” (1963) e do dito filme, também erguemos aqui em 1990 um monumento em sua homenagem. A obra elaborada pelo artista Paulo Siqueira passou a representar a cidade em publicidade pública e privada. Interessante notar que o  escultor também criou o monumento aos ferroviários, mas este não elegemos símbolo, mesmo que aluda historicamente ao principal período de desenvolvimento urbano daqui.

Teixeirinha foi pioneiro no ramo da produção de bens culturais, ao captar verbas públicas para um empreendimento privado com fins lucrativos, que foi o filme “Gaúcho de Passo Fundo”. Com projeto aprovado pelo legislativo, o executivo municipal autorizou crédito especial no valor de 250 mil cruzeiros em favor de Teixeirinha Produções Artísticas Ltda. Durante o trâmite, o prefeito Wolmar Salton justificou constituir-se “honroso reconhecimento do mérito que soube conquistar esse passo-fundense de tão futuroso porvir, qual seja, Victor Matheus Teixeira, o nosso Teixeirinha”. Para o alcaide, o filme com certeza seria um estrondoso sucesso de bilheteria e “indubitavelmente levaria a todos os rincões da pátria a imagem e o destaque que efetivamente a cidade de Passo Fundo merecia”.

Naquele ano o cantor já residia em Porto Alegre. Em carta enviada à câmara, escreveu: “sabem todos que minha admiração e meu amor por Passo Fundo já ultrapassou as fronteiras do nosso país, pois tendo cantado bem alto este sentimento em muitas das minhas canções”.

A oposição, formada pela Arena, chiou. Pois o projeto produziria lucros pessoais a Teixeirinha e colocaria a máquina pública a seu serviço para a produção, com a disponibilidade de transporte e de servidores. Mas parece não ter sido em vão. Como recompensa, integrantes do governo e da oposição foram astros por um dia. Apareceram na grande tela em cena forjada no roteiro, em que o caubói recebe a chave da cidade.

Importante destacar aqui os dados revelados por Israel Lopes na biografia oficial de Teixeirinha, sobre a bilheteria dos filmes do seu ídolo. A película Gaúcho de Passo Fundo, só na cidade-título, teria rendido mais de 500 mil cruzeiros. O dobro do investido pela prefeitura. A oposição estava certa? Talvez. O biógrafo conclui que o cineasta desistiu da carreira após o décimo segundo filme por cansar de empatar as contas. Já a pesquisadora Miriam de Souza Rossini revelou que o cineasta foi incentivado no período militar, recebendo verba da Embrafilme.

Teixeirinha é emblemático na construção identitária contemporânea. Sem raízes campeiras, tratorista de obras públicas e dono de banca de tiro-ao-alvo, ao utilizar o espaço de uma emissora de rádio, ele se fez representante da cultura gauchesca, ou seja, se fez como ente artístico e personagem abstrato.

A partir dele, seria interessante refletirmos sobre a identidade que queremos e sobre onde investimos os recursos públicos destinados à cultura. Vamos continuar cultuando esta imagem anti-civilizatória, que fica clara no filme bangue-bangue e na música “Gaúcho de Passo Fundo”, oficializada como símbolo do município em 2002? Vamos prestar atenção ao significado do verso que marca nossa identidade gentílica: “Mas se alguém me pisar no pala/ Meu revólver fala/ E o bochincho tá feito”.

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