O complexo desenrolar do cotidiano escancara as portas do lar e faz do palco uma janela. Janela essa que possibilita que qualquer andarilho de passagem seja capaz de vislumbrar uns poucos relances de uma relação entre pai e filho. Três palavras são capazes de definir o espetáculo de sábado a noite na III Mostra Sesc de Teatro: intimidade, força e intensidade. “O Filho Eterno”, monólogo baseado no livro de Cristóvão Tezza, é um drama, produzido pela companhia carioca Atores de Laura, e que se sobressai em meio à comédia da III Mostra Sesc de Teatro.
Tanto livro quanto espetáculo retratam a luta diária de um homem que se vê obrigado a lidar com as decepções que um filho pode trazer. O enfoque é, justamente, no desafio às limitações. Em cena, Charles Fricks, sob a direção de Daniel Herz, dá vida a um pai capaz de dar voz às mais angustiantes inquietações do ser humano. Do palco, o monólogo joga para o público frases de impacto e inesperadas que, pouco a pouco, dão o tom poético de uma trama que coloca na mesa pensamentos jamais ditos. Entre as reflexões propostas nas páginas e trazida para o palco, a chegada do primeiro filho com síndrome de down é uma abordagem repleta de intensidade.
Além da força do texto e da intensidade da história, por ser um monólogo, “O Filho Eterno” é, também, um espetáculo de intimidade. Não há para onde fugir: o ator fala com o público e dele espera uma resposta. No livro, Cristóvao Tezza se utiliza da linguagem em terceira pessoa para contar uma história carregada de grandes mágoas e pequenas alegrias. O próprio autor tem um filho com a mesma síndrome retratada. Talvez, o romance seja uma espécie de autobiografia redentória. A história, premiada nacional e internacionalmente, é, segundo a crítica, capaz de abrir caminhos inovadores para que se discuta a tão famigerada relação entre vida e obra.
A ideia para a adaptação do texto de Tezza surgiu na leitura do livro. O desejo de fazer um monólogo já instigava o ator da peça, Charles. Faltava o texto e o diretor. Daniel, o diretor, aceitou o desafio e quando “O Filho Eterno” chegou nas mãos de Charles, a hora de encarar o palco sozinho havia chegado. “Quando nosso amigo e ator Pablo Sanábio mostrou o livro para o Charles tivemos a certeza de que essa era a historia certa para essa experiência”, conta Daniel. O desafio foi para ambos: Charles precisaria dar vida à uma peça. Daniel precisaria conduzir isso. “Ter só um ator em cena traz questões e desafios muito interessantes para um diretor”, comenta Daniel. “Produzir com só um corpo humano um mundo de relações que aparecem na dramaturgia de uma história, de uma peça é um deles. A potência corporal e vocal tem que estar no seu máximo”, explica. Para ele, Charles é o parceiro ideal. “É um presente dos deuses do teatro trabalhar com o Charles. Um parceiro único”, comenta.
Em entrevista ao Segundo Caderno, Charles Fricks contou um pouco mais sobre a obra e sobre o processo de produção. Confira!
Segundo: A peça é uma adaptação de Cristóvão Tezza - com um texto é difícil, intenso e muito forte - que traz a relação de um pai com um filho de síndrome de down. Como surgiu a ideia de fazer essa adaptação e como foi o processo de desenvolvimento da peça?
Charles Fricks: Sempre trabalhei em peças com elenco numeroso, em grupos de teatro , etc. A partir de 2007, 2008 comecei a me questionar se um dia faria um monólogo na minha carreira. Que prazer seria esse de estar "sozinho em cena"? Comentei com alguns amigos sobre o meu desejo e que me indicassem algum texto. Não encontrava nenhum que quisesse montar. Cansei de procurar e pedi ao Daniel Herz que me dirigisse no meu primeiro monólogo. Não tinha ideia, nem dinheiro, nem nada. Só a vontade de trabalharmos juntos novamente (trabalhamos juntos há 20 anos ). Daniel topou na hora e começamos a nos encontrar uma vez por semana para ler coisas, ter ideias. Para esses encontros Daniel convidou o dramatugo Bruno Lara Resende. Depois de algumas semanas de encontros dos 3 , um amigo ator , Pablo Sanábio, me mandou uma mensagem pelo computador: estou lendo um livro que você TINHA que adaptar para o teatro, você faria muito bem: O FILHO ETERNO. Assim começo t udo...
Como é estar sozinho em cena? Quais são os principais desafios de encarar um público somente com a tua interpretação e com o teu trabalho?
É claro que a responsabilidade de estar num palco sozinho e o esforço de falar por 1h18m são muito maiores do que em uma peça com 3, 4, 10 atores. Mas em nenhum momento me sinto sozinho em cena. Desde o início do espetáculo me dirijo muito a plateia. Ela é o outro ator em cena. Mesmo que ela não saiba. Estou contracenando com ela o tempo todo. O olhar da plateia é o olhar que me dá energia (quando vejo o interesse "bebendo as palavras do texto") ou o que me desconcentra (quando os celulares são acesos, vício da modernidade). Mais do que nunca, em um monólogo, "cada sessão é uma sessão completamente diferente da outra"
Apesar de ser um monólogo, vocês pertencem a uma companhia teatral. Como é, para a companhia, comportar um monólogo? Como o grupo reagiu, como aconteceu?
Quando pedi ao Daniel para me dirigir num monólogo pensei: quero que seja fora da Cia. Daniel foi enfático em dizer que não, tinha que ser uma peça dos Atores de Laura. Foi uma ótima decisão. Nossa média de idade hoje em dia é de 40 anos. Já estamos bem maduros na Cia para termos um ator fazendo um monólogo, outro grupo de 3 atores com outra peça (O enxoval), etc... E cada ator, na sua possibilidade , ajudou de alguma forma na produção de “O Filho Eterno”. É uma peça de um único ator mas, ao mesmo tempo, é uma peça de TODOS NÓS.
Em Passo Fundo, vocês irão participar de uma mostra de teatro com outros grupos. O que você espera passar ou o que você espera do público?
Com “O Filho Eterno” já passamos por 44 cidades desde sua estreia (junho/2011), quase todos os Estados brasileiros (só faltam 3) e fomos vistos por mais de 30 mil pessoas. Algumas plateias são mais abertas que outras. Mas o texto de Cristovão Tezza chega a todos, de uma forma ou de outra. O livro O Filho Eterno, conta a história desse jovem escritor de 28 anos que rejeita o seu primeiro filho por ele ter nascido down. Para mim o livro/peça é uma grande metáfora sobre a dificuldade que nós temos em aceitar quem é diferente de nós. Da nossa terrível mania de querer que o outro seja igual a nós. É uma obra sobre a intolerância humana que, infelizmente, está tão presente. Seja no nosso Congresso Nacional, na TV, na escola, nas esquinas e dentre de nossas casas. As pessoas se emocionam tanto com a peça porque veem nelas a própria intolerância que muitas vezes nem notamos que tínhamos. E isso independe se temos ou não contato com alguém Síndrome de Down. O texto é muito mais abrangente.
Nessa mostra, O Filho Eterno é o único drama entre comédias e comédias românticas. A peça é reconhecida e é muito intensa. Como vocês percebem essa escolha?
Eu nem sabia que somos a única peça dramática da Mostra. Só espero que a plateia não vá esperando gargalhar (rsrs). Mas que vá aberta a ouvir uma linda história de amor de um pai por um filho.
Além de O Filho Eterno, no domingo o palco do Sesc recebe a comédia romântica Tarja Preta. O espetáculo, com Letícia Isnard e Érico Brás, retrata uma mulher que, viciada nos remédios tarja preta que a ajudam a viver, inventa uma espécie de paraíso artificial, no qual estabelece uma conversa incessante com seu próprio cérebro. Além dos remédios, também abusa do álcool e drogas, prejudicando de forma drástica o funcionamento do seu cérebro. A cada problema ou sofrimento da sua dona, é ele quem mais sofre com a morte de milhões de neurônios. Mas não para por aí, confira a agenda do final de semana:
Sábado, 28
Cortejo Musical Circense
Rua Morom
10h e 16h
O Filho Eterno
Teatro do Sesc
20h
Domingo, 29
Misto Quente
Praça Antonino Xavier, s/n (em frente ao Hospital da Cidade)
16h
Tarja Preta
Teatro do Sesc
20h
*Ingressos e outras informações no Sesc ou pelo telefone (54) 3311.9973.