Em 20 de outubro de 2000, Astrid Fontanelle abriu as portas da MTV. Com o clipe de Garota de Ipanema, interpretada por Marina Lima, o Brasil conhecia o canal que, nos próximos anos, seria um ícone de música, liberdade de expressão e de conteúdo de qualidade. Na madrugada de quinta para sexta-feira, foi ela, Astrid, quem fechou as portas. A MTV Brasil deixou de existir oficialmente e, a partir de outubro, se torna um canal pago.
A noite de quinta-feira foi o exato retrato da nostalgia. Um prédio lotado de câmeras recebeu os VJ’s e artistas que construíram a história do canal e da própria carreira. Em uma programação que iniciou às 18h e se estendeu até a primeira hora de sexta-feira, a festa de despedida mergulhou pelos 23 anos de história do canal através do programa My MTV. O acervo da emissora foi completamente aberto e qualquer um que estava no prédio, naquela noite, podia rever o programa, clipe ou comercial que desejasse.
A experiência de rever aspectos importantes da sociedade e da história brasileira pelo viés da MTV permitiu comprovar que, de fato, o canal foi corajoso: lançou bandas que, mais tarde, virariam febre; abriu espaço para gente desconhecida, fez piada do governo e da política, falou de sexo e de homossexualismo - transmitiu o primeiro beijo gay da TV aberta. Em que universo um “canal que só reproduz música” consegue interferir no cotidiano? A MTV conseguiu. E, mais que isso, foi capaz de se reinventar, a cada tombo, e se manter uma plataforma que oxigenou outras emissoras e que descobriu gente que hoje passeia pelo horário nobre. Entre o cult e o improviso, a MTV cresceu e, agora, se despede.
Sobre o perfil
Os 23 anos da emissora comportaram a construção de um perfil que se moldou através dos anos. No início, a MTV era a própria música. O formato pediu companhia e, logo, se achegaram o humor, os campeonatos de futebol e os programas sobre sexo.
Ainda nos anos 90, por exemplo, Lado B trazia para a cena musical bandas alternativas que surgiam nas garagens, antes de descobrirem o Youtube. Na programação mais atual, o Lado B se transformou no Acesso MTV, apresentado por Titi Muller e Mari Moon. O esquema é o mesmo: apresentar a galera que faz sucesso, mas que o Brasil ainda não sabe. Além deles, o Disk MTV e o Top 10 MTV ditavam o que o telespectador deveria escutar - o canal jamais se rendeu ao funk e ao sertanejo e isso talvez explique um pouco da sua extinção.
Companheiro da música, o Rockgol transitou por todas as fases do canal. O campeonato acontecia entre as bandas e tinha a narração de Paulo Bonfá e Marco Bianchi. O programa foi, muito mais, uma proposta de encontro entre bandas do que um campeonato verdadeiro. O humor e a personalidade dos músicos foi o que segurou a programação no ar.
Nos programas mais polêmicos, como Barraco MTV e Sem Vergonha, o que segurou o telespectador foi, justamente, poder entrar na vida do outro.Os Piores Clipes do Mundo, Garganta e Torcicolo, o famoso e tradicional Hermes e Renato. Os programas são característicos da MTV e conquistaram o público pela acidez. Nas fases mais atuais, 15 Minutos de Marcelo Adnet, Beija Sapo, de Daniele Ciccareli. Mas, mesmo com tantos nomes, o que tenha feito da MTV um canal confiável tenha sido três programações em especial: o VMB, o Acústico MTV e o Estúdio Coca-Cola.
VMB, Acústico MTV, Estúdio Coca Cola
No VMB, a emoção sempre falou mais alto. Unir Barão Vermelho e Bezerra da Silva e colocar em foco o movimento Tropicália, três décadas depois do seu auge são exemplos da ousadia e inovação propostas pela premiação. A verdade sempre ficou muito clara na tela da MTV: Caetano Veloso xingou a emissora ao vivo, Restart foi vaiado, Dercy Gonçalves enfileirou palavrões para João Gordo. Nada foi cortado, censurado ou tirado do ar.
Além da premiação, o Acústico MTV foi a grande jogada do canal. De Legião Urbana ao adeus de Sandy e Junior, a MTV explorou facetas diferentes dos artistas. O Acústico MTV celebrou o rock de Rita Lee, a suavidade de Renato cantando Hoje a Noite Não Tem Luar (“Ela não é bonitinha? Eu fico até emocionado!”), o gingado de Art Popular. Além deles, o Rei, Roberto Carlos foi o nome do Acústico de 2000 - que traçou uma linha do tempo na carreira de Roberto e, ainda, fez com que músicas esquecidas no tempo voltassem a ser pedidas na rádio. E, em 2005, pela primeira vez, o Acústico foi gravado não por uma, mas por quatro bandas. Ultramen, Wander Wildner, Cachorro Grande e Bidê ou Balde tocaram 20 músicas que mostravam o Rio Grande do Sul.
Como se não bastassem os acústicos, a MTV passou a veicular, no último domingo do mês, entre 2007 e 2008, o Estúdio Coca-Cola. A proposta era unir dois artistas completamente diferentes e fazê-los inventar no palco. O programa mostrava a concepção das músicas, a produção do show e o espetáculo em si. Por causa da MTV, Marcelo D2 e Lenine tocaram juntos; Pitty e Negra Li; Nando Reis e Cachorro Grande. O hardcore se uniu ao axé com CPM 22 e Babado Novo. Chitãozinho e Xororó cantaram lado a lado com a banda Fresno. O último encontro foi entre Banda Calypso e Paralamas do Sucesso. O encontro ajudou a quebrar preconceitos da música que surgiam a cada ano.
Fim da fronteira
A MTV foi, ao longo do tempo, um território livre. Ousadia, coragem e irreverência marcaram o canal que fez parte da última e da atual geração. O porque do fim? Talvez seja por causa do perfil traçado e imutável, mas o motivo principal é, certamente, a chegada da internet. A programação que, no início, era novidade foi engolida pela instantaneidade do Youtube. Não houve mais o que reinventar. Fica a certeza de que a MTV manteve o espírito até o fim: riu de si mesma ao estreiar, em julho, “O Último Programa do Mundo” - um talk show que passeou pelo arquivo vergonhoso da MTV e tentou entender o porquê do fim de uma forma divertida e irônica.
Agora, as fronteiras que pouco delimitavam seu espaço somem e dão espaço a uma nova fase. Uma nova emissora surge. O canal segue exibindo uma programação especial já gravada até a próxima terça-feira e reestreia no dia 1º de outubro na televisão à cabo, com uma programação diferente.