Um estrangeiro na sua cidade natal

Natural daqui, Marcelo Canellas volta para Passo Fundo para falar aos acadêmicos e lançar o livro Províncias

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A arte de contar uma his­tória é, das possibilida­des humanas, uma das mais complicadas. Como mergulhar no íntimo de um ser e dele extrair o suficiente para que um pouco daquilo que guarda ganhe a mente dos que lhe rodeiam? Marcelo Canellas conse­gue. O gaúcho de Passo Fundo, faz parte do grupo de jornalistas que fala diretamente ao lado humano de quem o lê, vê e ouve. Na segun­da-feira, volta a colocar os pés na sua cidade natal para lançar o livro “Províncias – crônicas da alma in­teriorana” na Academia Passo Fun­dense de Letras e conversar com os alunos da Faculdade de Artes e Co­municação. Antes disso o Segundo Caderno decidiu contar a história dele.

Marcelo é ousado. Corajoso. Auda­cioso. Lapida o caos de um fato e o transforma em um material extre­mamente humano. E, na opinião dele, é assim que deve ser. O jorna­lista deve ser capaz de organizar o amontoado de informações que lhe são jogadas e, especialmente, ques­tionar até encontrar uma boa for­ma de contar o que precisa. “Aque­la história de que jornalista é vaca de presépio ou moleque de recado é equivocada. O jornalista é crítico, desconfiado e questionador. E tem que ter a humildade intelectual para aceitar que pode ser engana­do pelas aparências. O fato apare­ce, diante de ti e tu precisa enten­der tudo isso e depois passar aos outros”, comenta. Além da inde­pendência intelectual e da humil­dade em perceber os fatos, Marcelo acredita que o respeito com aque­le cuja história você deseja saber é essencial: “É preciso respeitar quem você vai retratar e assu­mir uma postura de interlocução. Hoje, muitos jornalistas têm uma postura inquisitória, parecendo que você está lá pra arrancar al­guma coisa, ao invés de estar ali para ouvir. Não se pode arrancar uma entrevista”, complementa. E tudo isso é, para Marcelo, questões éticas e de posicionamento da pro­fissão.

Evolução do Jornalismo

Marcelo vem de uma geração de jornalistas que usava a máquina de escrever e o orelhão para pas­sar matérias. Hoje, vê a tecnologia como aliada. “O jornalismo atu­al tem a seu favor o resultado de uma revolução tecnológica. Quan­do eu queria fazer uma matéria, tinha que consultar quilos e quilos de enciclopédias. Hoje, coloca uma palavra na internet e sai pronto”, comenta. A evolução do homem, no entanto, é questionável: “Acre­dito que não houve a correspon­dente evolução de postura ética do jornalista equivalente à evolução tecnológica. Continuamos a come­ter os mesmos erros e isso é um problema que a gente não conse­guiu resolver”, destaca.

Um desses problemas é a pressa do jornalista. “Um erro é assu­mir uma postura excessivamente afoita no sentido de dar antes a notícia, o furo, a qualquer preço. Assumir a postura de tentar pro­duzir uma emoção artificial. Uma notícia espetacular. Tudo isso são equívocos e vícios da profissão co­metidos desde sempre e que nun­ca mudamos”.

Os desafios do Marcelo

Há mais de duas décadas na TV Globo, Marcelo, há muito, tem cré­dito com a emissora e pode, dentro do seu jeito, contar a história que deseja. ”Continuo rigorosamen­te fazendo a mesma coisa - que é reportagem - e que eu amo fazer. E acho que os desafios continuam os mesmos. Você tentar montar de maneira atraente e inovadora e encontrar formas narrativas ino­vadoras de contar uma historia. Isso é o que me move.”. Marcelo destaca a transformação da tele­visão como um desafio que bate às portas. “A juventude está dei­xando de ver TV na TV. Estamos passando por uma mudança de plataforma e a gente precisa se adaptar. Não me preocupo com a mudança de plataforma porque o cara que vai contar a historia vai estar sempre ali, independente da plataforma”.

Mesmo com tanto tempo de casa, algumas matérias demoram a ser aceitas. Ele não desiste. “A pos­tura correta do jornalista é fazer conforme o be-a-bá da profissão. Ouvir todo mundo, estabelecer o contexto da notícia, fazer como manda o figurino e isso é prerro­gativa do repórter. Se vai publicar ou não, cortar ou não, não é mais com o repórter. É uma decisão edi­torial. E a gente não tem que ficar bravo se derrubarem a matéria ou se não é aprovada a nossa pauta. Faz parte, como missão, insistir. Eu tenho casos que eu levei até quatro anos aprovar uma pauta. Mas eu sou chato, eu fico insistin­do e preparando melhor”, explica.

Antes desse processo, no entanto, é preciso definir o que é ou não notícia e, para Marcelo, essa dis­cussão deve acontecer dentro da redação. “É dentro da redação que se estabelece o que é notícia, o que torna um fato merecedor da exis­tência pública. Essa discussão nos pertence e é necessária. Não pode­mos nos omitir. Às vezes a gente perde, às vezes ganha. Normal. Quanto mais democrática for uma redação, mais saudável ela é. Uma redação tem que ter de tudo”.

Imparcialidade?

Durante os 25 anos de profissão, Marcelo viajou o Brasil e contou as histórias da fome, da prosti­tuição infantil e da criança e do adolescente. Os temas são, por si só, capazes de balançar emoções. E, mesmo que o tema fosse outro, Marcelo não acredita na imparcialidade 

do repórter. Prefere usar conceitos como objetividade e acredita ser impossível omitir opi­niões ou posicionamentos diante de uma injustiça. “O conceito que eu uso e prezo é o de objetividade: está no campo de conhecimento e é a objetividade do jornalista com a notícia é uma relação de conhe­cimento. Você transforma um con­creto que tu observa, num concre­to pensado que vira notícia. E isso não tem nada ver com imparciali­dade que está no campo da moral. Quando tu te depara com uma in­justiça - que você está denuncian­do - tu vai ser imparcial? Tu vai ser neutro em relação a quem? Tu vai se colocar claramente ao lado de quem está sendo lesado. De maneira nenhuma acredito nesses conceitos. Eu acredito em isenção e em objetividade”, esclarece.

Nos bancos da Universidade

Marcelo tem percorrido univer­sidades pelo Brasil inteiro e, nes­ta segunda-feira, passa pela UPF. Vendo os alunos de jornalismo, ele se enxerga. “A juventude sempre tem uma essência questionadora e isso é uma coisa boa. Eu me im­pressiono muito e fico triste quan­do encontro um jovem acomoda­do e desanimado”, comenta. Em todas as viagens, Marcelo já viu de tudo: “Vi classes inteiras com es­tudantes questionadores e outros totalmente apáticos. Não existe uma homogeneidade de compor­tamento”.

Falando do interior

Sobre o livro que está lançando, Pro­víncias, Marcelo comenta que é uma relação que ele não conhecia e que o aproxima do leitor. “É totalmente dife­rente do jornalismo. Comecei a escre­ver crônicas quando o Diário de Santa Maria foi fundado, em 2002, e aí fui me apaixonando por uma relação que eu desconhecia. Minha relação sempre foi com o telespectador e sempre foi avas­saladora. O trabalho de televisão é um trabalho de equipe, diferentemente da literatura e da atuação como cronista que é individual e solitária. Tu estabe­lece, com o leitor, uma relação indivi­dualizada. Tu estabelece um dialogo com o leitor, que eu desconhecia, e que é muito prazerosa”.

O tema escolhido é o próprio interior. Uma forma de matar a saudade, mas, também, de contar um pouco mais da­quilo que viu pelo país inteiro. É, tam­bém, o momento de tornar a escritas mais leve. “É meu momento de escre­ver sem compromisso com a notícia, o que me da na telha. É o império da desimportância. O jornalismo trata do que é importante, a crônica trata das coisas banais que tem uma dimensão humana e que pode ser universaliza­da. E o tema ligado as coisas do inte­rior, ao modo do interior, ao modo de vida no interior do Brasil é universal. Falo muito de Santa Maria, porque é a cidade que tenho uma relação de afe­to profunda, mas é, na verdade, sobre todo o Brasil

Um estrangeiro

Nascido em Passo Fundo, Marcelo logo se mudou para Santa Maria. Lá cresceu, se formou e encontrou o jornalismo. Ainda que não tenha muitas raízes por aqui, a relação é de orgulho. “Nasci em Passo Fundo porque meu pai foi trans­ferido e ficou alguns meses na cidade. Não tenho amigos de infância ou fami­liares, mas é uma relação de encanta­mento, orgulho. Quando eu estava na escola, enchia a boca pra dizer que era de Passo Fundo. Eu tinha o maior orgu­lho em dizer que era de Passo Fundo. Voltar a Passo Fundo, pra mim, é sem­pre muito intenso e é uma sensação estranha. Me sinto um estrangeiro na cidade natal. Uma emoção sempre es­tranha, diferente”, encerra.

Marcelo Canellas estará em Passo Fundo na segunda-feira, 21. Às 17h faz o lançamento do livro Províncias na Academia Passo Fundense de Letras e, mais tarde, às 20h, palestra na Semana Acadêmica da Faculdade de Artes e Co­municação.

 

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