Coluna: A carta

Por: Pablo Morenno

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· 2 min de leitura
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Nestes dias de Feira do Livro a literatura se juntou com a vida, as histórias inventadas se amalgamaram com as histórias reais dos leitores e escritores nas ruas do centro de Passo Fundo. Como acontece este milagre da “mentira” influenciar tanto a vida? Por que histórias inventadas se tornam tão importantes para a existência?

Dizendo literatura, onde Gullar disse poesia, parafraseio: “A literatura deve ajudar as pessoas a viver. Não com mentiras, não com bobagens, porque com isso não ajudaria. Mas ajudar as pessoas a viver na medida em que revela a beleza da vida. Não o “bonitinho” da vida, mas a beleza, as coisas profundas, essenciais, a experiência fundamental do ser humano.”

Ler a literatura com os olhos da vida e ler a vida com os olhos da literatura são exercícios humanos criadores de sentido. Se a literatura não serve para nada, é certo também que serve para tudo. A metáfora, mãe de todas as experiências literárias, não é mais do que uma promiscuidade entre os objetos do mundo na procura do preenchimento dos vazios da vida, procurando significâncias antes inexistentes.

Minha mãe me contou um fato de infância que, talvez, tenha sido minha primeira revelação como escritor. Dias antes do Natal, esperávamos minha irmã que trabalhava como empregada doméstica em São Paulo. Veio apenas uma carta. Sabíamos que era dela porque a mulher dos Correios leu o remetente para mim e minha mãe.

No final da tarde, depois de descermos o morro até nossa casa, a mãe fez um chimarrão e sentou-se sob o cinamomo do pátio. Ela olhava a carta e chorava. Chorava e olhava a carta. Aquela tristeza materna, como o machado do pai lascando a lenha para a janta, espedaçava alguma coisa em mim. Não havia ninguém alfabetizado para a leitura.

Mamãe, posso ler a carta, se a senhora quiser, eu disse. - Como você vai lê-la, se ainda nem foi à escola, ela disse. - Mas eu sei ler, sim. Quer ver?

A mãe foi até o quarto, pegou uma tesoura na máquina de costura, cortou com cuidado um lado da carta, e me entregou a folha de caderno recheada de sinais. Tomei a carta nas mãos e a li em voz alta. Minha mãe começou a sorrir. Depois, foi esquentar água para lavar os úberes das vacas antes de tirar o leite. Foi preparar a janta. A vida retornou à sua aparente e costumeira normalidade.

Não sei o que li naquela carta. Não tenho como saber se a carta inventada por um menino sem alfabeto tinha ao menos uma palavra da verdadeira. Sei apenas que, naquele momento, descobri o poder da imaginação para iluminar o rosto das pessoas, para dar forças para retomar a vida.

Escritores, mesmo quando inventam o mundo,  dizem coisas que se   nele ainda não estão, poderiam ou deveriam estar. Se as palavras escritas são do mundo real ou do mundo inventado é coisa sem importância. Importa apenas que a literatura - como disse Gullar sobre a poesia - revele a beleza da vida. Ou - como disse Érico Veríssimo do escritor - segure uma lâmpada para iluminar o mundo

 

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