Coluna: O Plantador de cartas

Por Pablo Morenno

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No tempo em que ainda não havia outra forma de comunicação, exceto as cartas, surgiu um homem na terra dos mortais. Cresceu normal como os meninos de seu povo, corria nas estradas, fazia cata-ventos e até prendeu alguns passarinhos na gaiola.

Para que eu fale dele devia ter algo diferente. E tinha. Mas a diferença apenas começou a tomar forma quando chegou a juventude. Sem que ninguém soubesse, descobriu um modo de entrar nos Correios à noite. Enquanto todos dormiam seu sono e desfiavam seus sonhos, ele, sorrateiramente, abria todas as correspondências à espera de classificação. Não só ignorava ser esse um crime previsto no Código Penal do país, como achava ser uma obrigação sua, pois, se não abrisse as cartas, a insônia arregalava seus olhos por noites e noites.

Nosso homem não era um obsessivo com a intimidade dos outros: preocupava-lhe o conteúdo, jamais o destinatário ou remetente. Ele leu a carta de cobrança, nunca soube que era para o professor. Leu a carta desfazendo o casamento, nunca soube que era para Tereza, a catequista. Leu a ameaça de morte, nunca soube que era para Pedrão, o açougueiro. Estas foram algumas, entre milhares. A última foi uma declaração de guerra.

Todas as cartas que não achava dignas ele as enterrava num jardim sob um pinheiro e plantava, na cova de cada uma, um lírio da paz. No lugar da mensagem ruim, colocava algo melhor. Fazia tudo com muita destreza e perfeição. Até desenvolveu uma inigualável arte de imitar a caligrafia. Para o professor, mandou uma carta com cem dinheiros pelos eminentes serviços prestados à educação do povo. Para Tereza, copiou de Camões um poema de amor. Para Carlos, mandou a música “Canção da América” do Milton Nascimento. No lugar da declaração de guerra, mandou um poema de Thiago de Mello.

Nosso homem era feliz e fazia feliz a pequena cidade onde morava. As crianças dos arredores vinham todas as tardes olhar o seu pátio. Para compensar sua infância de carcereiro dos pássaros, além daquela mania de trocar as cartas, passou a alimentá-los em seu quintal com quirera e alpiste. As crianças vinham ver a ceia dos pássaros. Sabia estar ajudando muito o mundo. Ignorava se era Deus, ou se era a sorte, alguém também o ajudava. Dormia bem ao lado de sua mulher e acompanhava suas cartas mudando a vida do lugar fazendo-se de sonso, como se nada tivesse a ver com o assunto. Não havia assassinatos, amores desfeitos, nem vizinhos tendo que vender os filhos como escravos para pagar dívidas.

Numa manhã de Natal, a mulher amada de nosso homem, sentiu seu marido se levantar se levantar durante a noite.  Esperou para ver se ele voltava à cama, como fazia em muitos tempos. O dia amanheceu e ela acordou sozinha.

Sendo a única que sabia daquele estranho hábito do amado, foi até o jardim sob o pinheiro. À sombra da árvore, ele dormia entre estilhaços de bomba. E ficaria lá para sempre.

Como ninguém até estas horas da tarde regou os lírios de paz, advirto a todos ser preciso regá-los antes do meio dia de amanhã. E tampouco se esqueçam de alimentar os pássaros. Enfim, é tempo de Natal.

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