Um violino e um acordeom. Olhos muito expressivos e um coração cheio de desilusões. Um país fictício, dois habitantes perdidos e um destino incerto. O mesmo enredo, a mesma cena, a mesma palavra completariam 30 anos de teatros lotados. A temporada de verão no Theatro São Pedro não será mais a mesma. Não sem Kraunus Sang e Maestro Plestkaya. Não sem Tangos & Tragédias. Não sem a docilidade e a técnica de Nico Nicolaiewsky.
Na madrugada de sexta-feira, Porto Alegre ficou muda e o Rio Grande do Sul voltou a atenção para alguém que deixava a vida. Nico, ator, músico ou amante da arte, tinha 56 anos e enfrentava, desde janeiro, uma leucemia aguda. A temporada de apresentações do espetáculo Tangos & Tragédias – que sempre, desde 1984, acontece de 9 de janeiro a 9 de fevereiro – chegou a iniciar, mas, logo, os tratamentos tornaram-se intensivos e Nico precisou ficar internado no Hospital Moinhos de Vento, na capital. Às 5h30 da manhã de sexta, não resistiu a um último suspiro.
Ao lado de Hique Gomez, Nico nunca precisou de muito para abrir sorrisos na plateia, que, às vezes, sentava a sua frente pela segunda ou terceira vez. Uma história – bem inventada e sustentada até o fechar das cortinas – guiava a dupla na narrativa de situações cujo fim contrariava o “felizes para sempre” e, geralmente, acabava em traição, morte ou eterna desilusão. Apesar da temática, Kraunus e Plestkaya abusavam da espontaneidade e do humor inteligente e faziam do espetáculo uma fuga das atuais comédias apoiadas em humilhação e deboche. A graça vinha naturalmente, a cada canção ou diálogo entre os personagens, ou na própria ficção, que sempre custou parecer mentira. Com Tangos & Tragédias, Nico ensinou que o engraçado é a forma como se faz, e não o feito em si– talvez, ninguém consiga arrancar as gargalhadas do público tanto quanto ele e Hique. Com eles, noventa minutos sempre foram suficientes para que os gaúchos debatessem os temas que mais assombram as relações humanas, sem o uso de artifícios mirabolantes: nunca foi preciso um cenário especial ou objetos além dos instrumentos musicais, do próprio rosto e da expressão.
Apesar de ser, há 30 anos, Maestro Plestkaya, Nico aprendeu a ser mais. Entre piano, violino, gaita e voz, voou além de Tangos & Tragédias e, em 1996, lançou o álbum solo Nico Nicolaiewsky e seis anos mais tarde, o CD As Sete Caras da Verdade. Em 2007, veio o terceiro disco, Onde Está o Amor?. Em 2013 encarou o projeto Música de Camelô e regravou hits como “To Nem Aí” e “Ai Se Eu Te Pego” embalados apenas com a calmaria da voz e acordes do piano.
Nico provou que a repetição, quando bem feita, não cansa, não entedia e diverte. Provou, também, que poesia e lirismo não têm morada certa e que o seu canto é tão carregado de melodia quanto de sinceridade. Independentemente de mexer os pés ou as mãos, de gostar ou não de Ana Cristina ou de se ter o maior “bah” do mundo, o fato é a morte de Nico ainda que seja uma aparente tragédia para a arte gaúcha é, na verdade, uma prova de que tudo o que construiu, viveu, cantou e fez tocar vive. Mais do que o corpo ou a alma.