Coluna: Dois em um

Por Pablo Morenno

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· 3 min de leitura
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Estava lendo uma história em quadrinhos. Um dos personagens, ao ter de tomar uma decisão, estava representado com um anjo na orelha direita e um diabinho na orelha esquerda. Fiz um link com o filme “Frozen”, ainda em cartaz em alguns cinemas, sobre o qual já comentei em outra crônica. Diferentemente de outros desenhos clássicos, em que há um antagonista - uma bruxa, um dragão, algum poder do mal -, em “Frozen”, Elsa, a princesa protagonista, enfrenta seu antagonista em si mesma – o poder, sem controle, de transformar em gelo tudo o que toca.

Na novela “Em Família”, Laerte, com ciúmes indomáveis, perde o grande amor de sua vida por uma decisão equivocada. Torna-se antagonista de si mesmo. Depois da bobagem feita, ele se dá conta e é tarde.

Esse auto-boicote não se revela apenas em um desenho infantil, ou numa novela recheada de lugares comuns.

Um dos livros mais premiados dos últimos tempos, “O Filho Eterno”, de Cristóvão Tezza, propõe um personagem cujo principal conflito é interno, aceitar um filho com a síndrome de Down. Por um momento, tenta negar a existência da síndrome no filho. Num segundo momento, deseja a morte do filho. Por fim, aceita. Baseado na própria história do escritor, o romance esmiúça nossas contradições internas. Na vida e na ficção, o filho, tido como um estorvo para a carreira literária do pai, converte-se em tema de sua obra prima. Derrotar o antagonista é utilizar sua força a nosso favor.

No romance “Barba Ensopada de Sangue”, o protagonista também leva o oposto na mala de garupa. O personagem precisa resolver seu passado, superar a culpa pela morte do pai, entender-se com seu problema neurológico – não consegue gravar o rosto das pessoas e, ainda, não sabe criar vínculos afetivos.

Caio Riter, numa bela história infantil, “Eduarda na Barriga do Dragão”, aborda o mesmo tema para os pequenos. Sabe onde mora Eduarda, que morre de medo de dragões? Na barriguinha de um deles.

Esses exemplos do cinema e da literatura deviam nos tornar menos preocupados com os antagonistas externos. Quase todos os fracassados tendem a colocar a culpa nos outros, no mundo, na vida. Muitas religiões também explicam os fracassos como obra de um ser externo, o demônio. Trata-se de uma visão simplista da vida, uma racionalização como dizia Freud. Um modo de deixar as coisas como estão. Funciona como uma boa desculpa para quem não quer assumir os desastres provocados, quem se exime de responsabilidades por suas más escolhas, por sua falta de bom senso. Se a culpa está fora de mim, se sou vítima ingênua do destino, não resta nada a não ser entregar-se com a correnteza de um rio incontrolável.

Elsa, a princesa de Frozen, se isola do mundo, sofre para entender e controlar seu poder mágico. Quando aprende que o poder não é inimigo, começa a utilizá-lo em seu favor, e transforma o Reino. Começa a perceber a “maldição” como bênção, o “defeito” como “talento”.
O escritor-personagem de Tezza converte o conflito com seu antagonista interior numa obra literária impressionante.
O professor de educação física de “Barba Ensopada de Sangue” exorciza seus fantasmas interiores quando descobre que tirar a limpo a morte de seu avô é um motivo inconsciente para acertar contas com seu jeito de lidar com o mundo e seus personagens. Não transforma sua vida em felicidade mágica, mas consegue amar e construir significados para suas vivências.
Eduarda, de Caio Riter, liberta-se do medo do dragão fazendo poesia.

Os grandes personagens não se tornam heróis porque possuem superpoderes mágicos capazes de virar cinzas os dragões, bruxas, monstros de sete cabeças – inimigos externos. Adultos devem saber, essas figuras são simbólicas, literárias, metáforas. Os heróis autênticos são aqueles capazes de enfrentamento maduro de seus antagonistas internos: os conflitos, fantasias, traumas, racionalizações, medos, desculpas, coitadismos de todos os tipos.

Não somos seres unitários. Somos animais di-aléticos. Estamos muito enganados quando acreditamos serem os outros e o mundo os antagonistas de nossos sonhos. Nosso maior inimigo se alimenta em nosso prato de feijão com arroz. Somos dois em um, simbiose doentia de opostos.

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