A notícia da prisão por engano do ator e vendedor Vinícius Romão de Souza, de 26 anos, após ser acusado por uma mulher de tê-la assaltado – e a libertação duas semanas depois – me fez lembrar de Sidney Poitier e o importante papel desempenhado por esse ator negro nos anos 60, no cinema norte-americano. Em 1967, Poitier e o ótimo Rod Steiger protagonizaram “No calor da noite”, drama policial sobre racismo que foi, inclusive, indicado ao oscar de melhor filme. Poitier chega a uma cidade do sul onde houve um assassinato. Ao vê-lo na rodoviária, sozinho, à noite, um policial o prende, sem fazer perguntas. Na delegacia, o chefe de polícia pergunta como um negro ganha o tanto de dinheiro que ele diz ganhar.
- Sou oficial de polícia - responde o negro, para surpresa do chefe, interpretado por Steiger.
A trama toda envolve as relações desse policial negro em meio a uma investigação policial em uma sociedade pequena, conservadora e extremamente racista. Como essa sociedade reage a um negro com autoridade policial? E, pior, um negro que é considerado o melhor em sua profissão, um especialista cujo conhecimento vai muito além daquele que os broncos cidadãos da pequena cidade acumulam?
Um dos chefões daquela cidade, no momento mais polêmico do filme, esbofeteia o negro por achar que ele está sendo presunçoso ao lhe interrogar. Faz isso como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Um segundo depois, Poitier devolve a agressão na mesma moeda. Esbofeteia o branco, para pavor do chefe de polícia. O velho esbofeteado fica consternado. Como assim?
Não só eles ficaram consternados, em cena. A sociedade da época reagiu com opiniões diversas a essa cena simples. Um negro esbofeteando um branco no cinema como se lhe dissesse “cale a boca e deixa de ser mal educado. Quem manda aqui sou eu”
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No mesmo ano, o mesmo Poitier protagonizou “Adivinhe quem vem para jantar”, onde o casal interpretado por Spencer Tracy e Katharine Hepburn (casal famoso em Hollywood nas décadas anteriores em diversas comédias românticas) ficam escandalizados quando sua filha traz para dentro de casa seu namorado, o negro John Prentice (ele mesmo, Poitier). À medida que o casal busca encontrar defeitos no rapaz, acabam cada vez mais encontrando qualidades. Foi um ano capital para o cinema americano e o Oscar. Os dois filmes protagonizados por Poitier concorreram ao prêmio máximo. Hollywood perdeu a chance de fazer história premiando qualquer um dos dois, mas não dá para afirmar que o prêmio ficou mal: o vencedor foi “A Primeira Noite de um Homem”. “Uma Rajada de Balas”, de Arthur Penn, também estava indicado – apenas para que se tenha uma noção da qualidade da disputa daquele ano. São todos filmes que ajudaram a mudar o modo da América ver e fazer cinema nos anos que estavam por vir
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Essa luta contra o racismo poderia ter ganho seu capítulo de ouro em 1986, mas “A Cor Púrpura”, de Spielberg, foi indicado a 11 oscars e perdeu todos. Mais de 45 anos depois do tapa de Poitier, em 2014, “12 anos de escravidão” é forte concorrente a quebrar a escrita. O filme, aliás, já foi incluído como obrigatório no currículo de escolas americanas. Se é o melhor filme? Como cinema, acredito que não, mas a Academia costuma enfatizar, ás vezes, mais a importância “social” (vamos deixar nessa expressão) de uma produção do que sua qualidade técnica. É um ótimo filme – duas cenas, em especial, ainda me vêem à cabeça quando lembro do filme – mas nada impede que na semana que vem eu acabe falando, aqui, de “Gravidade” ou “Trapaça”. Vamos descobrir isso no domingo à noite – na TV a cabo, porque na TV aberta o Oscar só vai surgir na segunda de tarde, graças ao Carnaval.