No início de tudo, Eva experimentou a maçã. Expulsa do paraíso, tornou-se a mãe do pecado. Depois dela, veio a Ave Cheia de Graça. Concebida sem pecado, Maria tornou-se a mãe do amor. Entre uma e outra, uma multidão de Marias e Evas que não estão em nenhum dos apostos, mas lutam pelo meio termo.
Criado em 2006, a partir de fragmentos de textos, Eva Ave Marias ganhou corpo, ganhou voz. O espetáculo é um solo que traz para o centro do palco uma mulher – aqui interpretada pela atriz Tina Andrighetti – e a partir dela faz um panorama do gênero na sociedade e questiona o papel feminino na história. O Teatro do Sesc recebe o Grupo Teatro Mecânico neste sábado, 15, a partir das 20h.
Produzido com a intenção de provocar questionamentos, o espetáculo foge do drama e da cronologia. A abordagem é profunda e os fatos são associados com o passado e com situações atuais, o que possibilita relações com o próprio cotidiano de quem assiste. No palco, além da mulher, sapatos. Cada par inspira uma trajetória e constrói significado para a cena - tanto pela imagem quanto pela ludicidade a que se dispõem. Ainda que pareça, o espetáculo não é pretensioso a ponto de querer explicar o universo feminino. A intenção é apenas provocar – sem deixar de lado a visão masculina, mas olhando com a sensibilidade da mulher.
Tina Andrighetti falou com o Segundo Caderno sobre o espetáculo e suas intenções. Ela explica que no início, há oito anos, a preocupação era em ser ou não feminista. “A grande questão é: o que é ser feminista? E porque não ser? Não arrisco nas definições, mas assino Eva Ave Marias como um espetáculo pra se discutir a sociedade. É minha forma de ser feminista”, comenta. Nesse sentido, ela reflete que cada perda da mulher trouxe perda também para o homem e para a sociedade, de uma forma geral. “O fragmento da expulsão de Eva, extraído da Bíblia, por exemplo, mostra que também Adão foi julgado e nele lançada uma maldição. Todos perdemos e muito, com o "pecado original", cuja criação alimentou uma das maiores loucuras da história, que foi a inquisição. Então, como falar da mulher sem referir às perdas também para os homens? O espetáculo, não sei se tem essa clareza, mas sempre frisamos nas divulgações e em debates. Acredito que é também uma forma de comprometer os homens nessa caminhada”, explica.
Confira a entrevista com a atriz e saiba mais sobre a experiência e sobre o espetáculo:
Segundo Caderno: Como é realizar um espetáculo, atuar, e falar de um tema que é tão atual e que, por vezes, é deixado de lado, como o universo feminino?
Tina: É difícil, às vezes eu me sinto falando literalmente sozinha, como na peça (risos). Mas no trabalho, conto com pessoas especiais, que não estão aí apenas pra cumprir um papel e receber por isso. Acreditam mesmo que o espetáculo tem a sua missão, acreditam na sua fala. E talvez seja essa atualidade que incomoda. É como o racismo, como a homofobia, parece que nunca passa. O problema da violência contra a mulher, em todas as suas formas, é tão presente e tão agressivo, que às vezes preferimos que não nos lembrem disso. Por outro lado, a reação da plateia, ou melhor, de algumas pessoas, é muito gratificante. Tenho às vezes a impressão de que era "só chegar", já estavam nos esperando. Isso é muito bom e me encoraja seguir com ele.
Segundo Caderno: Existe alguma bandeira levantada? Se fala da mulher em que sentido? Quais os aspectos que são abordados?
Tina: Não, não tem bandeira alguma. Se tiver, é aquela que "baila" por uma sociedade melhor. Tenho uma ansiedade e uma urgência com isso. O espetáculo é feito de fragmentos, costurados entre si por sapatos que se transformam no que queremos que se transformem: objetos, compromissos, pessoas. Esses fragmentos abordam a mulher moderna, que trabalha fora, quer dar conta de tudo e tem uma ilusão de igualdade; a crença em um Deus que desencadeou a Inquisição, que lincamos com o advento do 'pecado original', com a expulsão de Adão e Eva; abordam uma faceta humanizada de Deus, a existência de Lilith; o estupro e a liberdade de decidir pela gravidez. Não nos comprometemos com uma sequência histórica, abordamos os assuntos que, naquele momento da montagem, nos pareceram mais pertinentes. E construímos, a partir de pedaços, uma dramaturgia. Deixamos as questões em aberto, o que dá um a liberdade de interpretação.
Segundo Caderno: Depois de quase 8 anos de espetáculo existe um consenso sobre o papel da mulher na sociedade?
Tina: Acho que não. Percebo resistência de uma parcela da sociedade e também de alguns setores representativos, em reconhecer e assumir que a violência existe. Não é só a física, é a psicológica, a verbal também. Aqui me refiro a mulheres mesmo, não a homens. Uma persistência em comemorar com Kit para fazer bolos, com distribuição de perfumes, com ensinamentos sobre maquiagens pra melhor "valorizarem-se". É uma ideia de liberdade que não liberta, mas domestica. Não falo de ausência de vaidade. Mas da vaidade que não tire nossa lucidez, nossa capacidade de lutar também pelas outras e por dias melhores.