Houve um tempo em que o cinema era mais inocente e a relação entre as telas e as escrituras bíblicas era um namoro constante. Desde os primeiros anos do século XX até os últimos suspiros do cinema clássico – nos anos 50 – a Bíblia foi fonte de inúmeras superproduções hollywoodianas. Todas, sem exceção, mantinham um discurso literal do texto bíblico. Algumas, até, de forma excessiva (Os Dez Mandamentos). Outras, mais moderadas (Ben Hur, Quo Vadis, O Manto Sagrado, Barrabás).
Quando o cinema perdeu a inocência na metade dos anos 60 em diante, esse namoro foi abalado por essa “mania” desses novos diretores de ousarem propor questionamentos e reflexões. Quem, afinal, eles pensavam ser? Pasolini, aquele italiano deturpado, ousando adaptar o evangelho ao cinema? Esse descendente de italianos, Scorsese, tendo a ousadia de retratar um Cristo repleto de dúvidas, como um ser humano comum, em “A Última Tentação de Cristo”? E esse anti-semita, Mel Gibson, torturando Jesus nas telas para, de quebra, atacar o povo judeu?
Agora, ainda, esse Aronofsky ousando adaptar a história de Noé para o cinema com liberdades artísticas???
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Qualquer visão das escrituras que tente ousar mais, propor um raciocínio, supor alguma contradição ou estabelecer questionamentos ou reflexões tem sido violentamente atacada por grupos religiosos – e esse movimento atingiu um clímax com o filme de Scorsese, em 1988. O tiro no pé, naquela ocasião, é que o filme de Scorsese não tem tantos motivos para a reação assustadoramente negativa e de boicote gerada na época (seu Cristo é tentado por Lúcifer, mas ao fim assume seu destino e morre para salvar a humanidade) e, sem querer, a reação da Igreja acabou ajudando na divulgação da obra – aliás, o filme é ótimo.
O que nos leva às reações negativas de grupos religiosos após o lançamento de “Noé”, épico alimentado e construído há anos pelo diretor Darren Aronofsky. Não vi o filme – pretendo vê-lo no final de semana. Mas, independente da abordagem, tenho comigo dos perigos de qualquer interpretação literal no campo artístico – a obra, é verdade, após chegar ao público, deixa de ser do autor e passa a pertencer e a ser interpretada pelo público. Porém não podemos esquecer que o que se vê em tela, mesmo que desperte diferentes reações no público, ainda é um visão autoral de uma história, uma interpretação. Uma visão, portanto, alegórica – como, aliás, defendo que devam ser vistos muitos textos bíblicos, principalmente do velho testamento.
Mesmo filmes biográficos contém liberdades – é próprio do cinema não se render à pura descrição de um fato real. A bem da verdade, basta uma simples trilha incidental para transformar a mais verídica recriação em uma obra de arte com um discurso escondido, já que o cinema não é apenas visual – ele é áudio, é signo, escolha de ângulo de câmera, tipo de iluminação. Tudo é discurso, portanto.
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Na arte, principalmente, o cerceamento religioso sufoca. O mesmo controle não cercou, por exemplo, versões cinematográficas que envolvem outras religiões, como por exemplo o “Kundun”, de Martin Scorsese, que falava sobre o Dalai Lama. Países do oriente baniram “Noé” porque é próprio da cultura e da religião local não permitir a caracterização de profetas. É diferente da cultura ocidental, onde ainda há espaço para gente como Jerry A. Johnson, presidente do National Religious Broadcasters, grupo que reúne comunicadores cristãos, que criticou as liberdades do filme mas disse dar sua “benção” a ele. Como se, afinal, a obra de arte de Aronofsky dependesse da benção de um pastor norte-americano. Uma postura tipicamente arrogante...
Já é difícil aceitar uma sociedade que queira ditar normas de conduta, orientação sexual e pré-conceitos à cor da pele. É igualmente absurdo ainda encontrar quem defenda o cerceamento à expressão artística ou o boicote a uma obra de arte, como a orientar o que a população deva ler, ver ou assistir em seus momentos particulares.
Vou ver Noé esperando a expressão artística de Aronofsky, e não o discurso dominical do evangelho – e, o mais importante, tendo a capacidade de entender a diferença entre eles. Será que quem critica as liberdades da obra de arte, no fim das contas, consegue entender essa diferença?