Preciso ver "Noé" de novo para reparar melhor em alguns simbolismos que eu acredito existirem no filme de Darren Aronofsky, mas, de uma forma geral, a impressão é de um bom filme que ficou aquém do que eu esperava a partir da informação de que Aronofsky trabalhava nele há quase uma década. É um filme aparentemente – e é bom enfocar o aparentemente – mais comercial do que artístico, principalmente na comparação com outras obras do diretor, como “Cisne Negro” e “The Fountain”.
Como produção que consumiu centenas milhões de dólares para ganhar vida, “Noé” precisa ser rentável. Se fosse um filme independente e intimista, não precisaria se render a certos clichês, mas para um blockbuster, é obrigatório ter um grande obstáculo ao protagonista. No caso, aqui, há dois: a dificuldade em aceitar o livre-arbítrio (o maior inimigo de Noé é sua falta de fé na humanidade) e o personagem de Tumbalcaim (Ray Winstone). Sei da necessidade de exteriorizar e personificar o mal, o obstáculo, o antagonismo, em um personagem, mas em uma opinião muito particular, acaba reduzindo muito o filme a um certo lugar comum. As liberdades tomadas com o mesmo personagem, Tumbalcaim, quando o dilúvio atinge a Terra, é um dos pontos que mais incomodaram religiosos conservadores. Para mim, não são as liberdades que incomodam, é a falta de originalidade nessa necessidade de antagonismo, inclusive, após o dilúvio enviado pelo “criador”.
Também senti um certo problema nas elipses – passagens de tempo - do filme. Não que elas não estejam lá, o diretor sublinha a passagem do tempo para o público de forma clara. O problema parece ser o estado das coisas do mundo entre uma passagem de tempo e outra. Em certos momentos, parecemos meros espectadores acompanhando de longe aqueles personagens. Falta uma conexão maior entre eles e o público. Essa distância compromete muito nossa reação, mas me pergunto se o problema não esteja justamente no fato desses personagens serem frutos de um texto sagrado - e mesmo de textos apócrifos, como é o caso dos Guardiões, os gigantes caídos, retirados do Livro dos Segredos de Enoque, um dos muitos textos apócrifos não reconhecidos no cânone da Ireja.
Noé, também, é um personagem complexo. Se nós entendemos a obsessão dele em servir "o criador" (Aronofsky evita dar nome a Deus, de forma inteligente, para que a história se adeque a outras crenças), o arco dramático parece esticado demais. O roteiro espicha ao máximo a transformação do personagem, a ponto de o próprio público se sentir impaciente. E quando essa transformação surge, próximo ao fim do filme, parece pouco plausível para o comportamento que ele mantinha até então.
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A maior dificuldade de Aronofsky era contar uma história cujo final todos conhecem de forma a tornar o filme universal, a outras religiões, e mesmo à falta de qualquer crença. Mesmo que o ritmo se torne pesado, que alguns clichês incomodem na narrativa e que alguns personagens sejam mal construídos, ele arrisca momentos fabulosos - a recriação do gênesis pela tradição oral, por exemplo, consegue unir evolucionismo com religião. Me parece que Aronofsky, aqui, também comenta o poder de transformação presente nas narrativas orais: enquanto Noé narra o gênesis, as imagens nos mostram uma transformação baseada no evolucionismo, como se dissesse que a transmissão de histórias orais da antiguidade poderiam distorcer os fatos, baseado nos mitos e medos. Me pareceu um discurso mais científico do que religioso.
Também, para indisposição de muita gente, há três vilões no filme: Tumbalcaim, Noé e o criador. O maior deles, talvez, seja mesmo o "criador", e ao sublinhar isso em alguns momentos ("Ela era boa", "Há gente boa lá fora, podemos ajudar") o diretor incorreu na ira de muitos grupos religiosos. A paleta cromática do filme é escura, sem brilho, sem vida, sem sol, com exceção do final. O simbolismo disso, mesmo para quem não está acostumado a uma análise mais detalhada, é óbvio.
Mas fico, mesmo, com a lembrança de uma cena com um simbolismo sutil: quando Matusalém procura frutas silvestres, que aparentemente ele não encontra mais, em contraposição com a presença de Ila (Emma Watson), que é estéril. É uma metáfora sutil, cujo arco se completa mais à frente pouco antes da morte do ancião. O tipo de detalhe que torna o filme de Aronofsky mais prazeroso do que se visto, unicamente, como o blockbuster que muitos estão dizendo que ele é.